Audiência pública na Assembleia Legislativa discute expansão de rede para Cuidados Paliativos em São Paulo
A ausência de atenção para os cuidados paliativos no Brasil levou o médico geriatra Douglas Crispim, coordenador do Programa de Integralidade Domiciliar em Barueri (SP), a criar um movimento para dar maior visibilidade à questão na sociedade. Com ele está a deputada estadual Sarah Munhoz (PC do B). Enfermeira de formação, ela é a responsável pela elaboração do Projeto de Lei 599/2014, que prevê a criação de uma Rede de Cuidados Paliativos no Estado de São Paulo.
No dia 9 de junho, eles se reuniram com outros profissionais da saúde para uma audiência pública na Assembleia Legislativa, a fim de discutir a expansão dos cuidados paliativos e a formalização de uma lei que disponha sobre o assunto.
Estiveram presentes na audiência o deputado estadual Jooji Hato (PMDB-SP); o secretário adjunto da Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo (SES-SP), Wilson Pollara; a médica Margareth Sena, do programa SOS Emergência, do Ministério da Saúde; o chefe do Núcleo de Cuidados Paliativos do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (HC-USP) e diretor científico da Academia Nacional de Cuidados Paliativos, Ricardo Tavares; a enfermeira Lívia Takona, coordenadora da Enfermaria de Cuidados Paliativos do HC-USP; e a psicóloga Daniela Bernardes, preceptora da residência multiprofissional em Cuidados Paliativos no HC-USP.
A deputada enfatizou a necessidade e a urgência da discussão do tema. “A morte faz parte da vida. Estamos aqui para nos mobilizarmos para que o governo seja sensível a essa questão, que diz respeito a todos nós”, afirmou.
Para o médico Crispim, a questão da terminalidade da vida ainda é cercada de muitos tabus no Brasil. “Vários países já avançaram nessa discussão, mas o Brasil está atrás”, destacou. Segundo ele, essa situação tem de ser mudada com urgência, já que muitos doentes passam por um sofrimento desnecessário devido à falta de atenção especializada.
“O maior empecilho para a expansão desta rede é a falta de informação a respeito dos Cuidados Paliativos. Muita gente ainda confunde com eutanásia”, ressaltou Crispim. A boa notícia é que a criação de mais serviços e a formação de profissionais especializados para tratar desses pacientes é, segundo o especialista, uma tendência irreversível.
A mesma urgência foi citada pelo médico Ricardo Tavares, do HC-USP. Citando o modelo britânico como padrão ideal, ele disse que o Brasil precisa de 10 mil leitos voltados para os cuidados paliativos e 1.200 equipes para atendimento aos pacientes. Atualmente existem, numa estimativa não muito precisa, 300 leitos e 100 equipes “que não sabemos como trabalham”, devido à falta de padronização técnica na oferta desse serviço. “Faltam profissionais formados para isso”, afirmou.
No final, a audiência contou com algumas discussões com a plateia, que teve oportunidade de esclarecer dúvidas e fazer sugestões às autoridades presentes. Segundo a deputada Sarah Munhoz, essa foi a primeira discussão sobre o projeto de lei. “A proposta está em análise nas comissões temáticas da Assembleia Legislativa, para posteriormente ir à votação”, explicou.
Para o médico Crispim, o resultado da audiência pública foi satisfatório. “Acho que várias iniciativas ligadas aos cuidados paliativos saem daqui fortalecidas. Vamos dar continuidade às discussões para implantação da lei, garantindo uma morte digna para todos”, disse.
Em sua opinião, a aprovação do PL 599/2014 dará amparo legal e visibilidade à prática. Sua maior queixa é que os Cuidados Paliativos ainda não fazem parte das disciplinas dos cursos da área médica. “Dessa forma, muitos hospitais e serviços de saúde acabam deixando esses pacientes ocuparem leitos hospitalares, passando por tratamentos desnecessários, quando deveriam estar com suas famílias.”
Pollara, da SES-SP, concordou: “Por falta de preparo dos serviços de saúde, estamos desperdiçando recursos com esses pacientes”.
Durante a audiência a médica Margareth Sena defendeu a desospitalização de pacientes sem possibilidade de cura, enquanto a enfermeira Lívia Takona ressaltou o papel da enfermagem no processo de Cuidados Paliativos. A psicóloga Daniela Bernardes, por sua vez, convidou todos a refletirem sobre o excesso de especialização e a pouca humanização no tratamento dos pacientes que enfrentam um processo de terminalidade.
Sobre o Projeto de Lei 599/2014
A legislação a ser apresentada em breve para votação no plenário da Assembleia Legislativa sugere que os municípios paulistas contarão com a Rede de Cuidados Paliativos, a ser implantada até 2017 em todo o estado.
Segundo o geriatra Douglas Crispim, os Cuidados Paliativos são aqueles definidos pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como o cuidado total e ativo de pacientes cuja doença não é mais responsiva a tratamento curativo. “Temos muito claro que diminuir a dor física é essencial nesse processo, mas há outras dimensões envolvidas, como a espiritual, a psicológica, a sociofamiliar”, disse Crispim.
O projeto de lei propõe que todos os municípios com mais de 100 mil habitantes deverão ter uma rede de Cuidados Paliativos, cuja cobertura abrangerá toda a população. Os municípios menores contarão com um centro de referência em Cuidados Paliativos.
“Não significa apenas ‘fazer o bem’. Há muitas iniciativas nesse sentido, mas não podemos chamá-las necessariamente de Cuidados Paliativos. Estamos falando de um trabalho técnico e científico, que precisa de profissionais especificamente formados para tanto”, afirmou Tavares.
“Os médicos não podem mais ser guiados por uma prática, ditada no Código Penal de 1940, que diz que se alguém não fizer absolutamente tudo para salvar a vida de uma pessoa, isso vai significar negligência, eutanásia ou crime”, opinou.
Na sua avaliação, o Brasil está num momento muito propício para a criação, “de forma real e efetiva, de leis que possam tornar essa necessidade uma realidade dentro do país”.
“E se São Paulo é um estado que tem por vocação estar à frente de alguns processos, creio estarmos na hora e no lugar certos para criar uma prática assistencial que seja condizente com as necessidades de dois terços da população, que morrem de doenças que precisam desse tipo de atenção e que na grande maioria dos casos frequentemente nem passam por esse tipo de assistência, porque há um grande desconhecimento da questão”, finalizou Tavares.
Continuidade do movimento dentro do âmbito do Legislativo
Ao encerrar a audiência, a deputada Sarah Munhoz afirmou que alguns encaminhamentos deveriam ser feitos para o PL seguir dentro do Legislativo.
Ela enumerou as questões abaixo como as que precisam ser melhor abordadas no projeto de lei:
- Definir a “terminalidade” tecnicamente e de forma clara;
- Desmistificar os Cuidados Paliativos, de forma que ele seja encarado como qualquer outro cuidado;
- Buscar conhecimentos para profissionais de saúde e população em geral;
- Incluir a formação e a capacitação para Cuidados Paliativos no currículo dos profissionais de saúde;
- Produzir documentos para conscientização da população sobre o tema no médio e longo prazo. Não tratar mais a morte como um tabu;
- Criar especializações em Cuidados Paliativos;
- Introdução do conceito de Cuidados Paliativos na educação básica;
- Incluir pelo menos 60 horas de Cuidados Paliativos nos cursos de saúde em geral;
- Estudar e trabalhar sobre uma anamnese de valores (entender quais os valores que permeiam a vida do indivíduo que tem uma doença incurável, pois será a partir deles que o paciente tomará suas decisões);
- Buscar uma forma de unir hospitais que já trabalham Cuidados Paliativos para que, juntos, possam traçar um currículo mínimo e padronizado para a formação;
- Mobilizar mais pessoas com o slogan: “vida digna, morte humanizada”.