Diário de Bordo: relato de um Congressista no III CICP
O Dr. Daniel Azevedo, membro da Comissão Científica da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia ( Rio de Janeiro) enviou para o site da ANCP as suas impressões sobre o III Congresso Internacional de Cuidados Paliativos.
No texto, uma análise bastante completa e objetiva, ele aponta os principais assuntos abordados e as lições que ficaram deste importante evento:
Diário de Bordo: III Congresso Internacional de Cuidados Paliativos
O clima chuvoso e a proverbial ausência de esquinas fizeram com que os cariocas que participaram do III Congresso Internacional de Cuidados Paliativos sentissem saudade de casa.
O evento, organizado pela Academia Nacional de Cuidados Paliativos, aconteceu em Brasília de 27 a 29 de novembro de 2008, com a participação de alguns sócios da SBGG como palestrantes ou congressistas.
O movimento moderno de paliação apresentava, em seu início, íntima correlação com a oncologia. Pensava-se no assunto quando se discutia um câncer para o qual não existia terapêutica curativa. No entanto, aos poucos os princípios da paliação foram se inserindo em outras especialidades.
Hoje em dia, admite-se por exemplo a importância da paliação em casos de demência, doença pulmonar obstrutiva crônica, doença renal terminal ou insuficiência cardíaca refratária. Uma reflexão mais profunda pode levar o profissional a concluir que, em verdade, são poucas as doenças passíveis de cura e que na maioria dos casos o que o tratamento faz é aliviar os sintomasou seja, paliar.
Uma das especialidades que possui ligação indissociável com a filosofia dos cuidados paliativos é a geriatria. Longe de pretender esgotar o assunto, este breve relato das palestras do congresso mais relevantes para geriatras e gerontólogos busca permitir que aqueles que não estiveram presentes possam, ao menos, saber o que foi discutido por lá.
O congresso teve início com uma bela apresentação de dueto de cordas (violino e violoncelo) que preparou o ambiente para a fala do médico Roberto D’Ávila, vice-presidente do Conselho Federal de Medicina. O Dr. D’Ávila enfatizou o crescimento do número de idosos no Brasil, chamando a atenção para o fenômeno paradoxal do aumento do casos de doenças crônico-degenerativas gerado pelos avanços tecnológicas. Ou seja: as pessoas vivem mais e por isso ficam mais doentes.
Os profissionais precisam reconhecer a finitude de seus pacientes e aprimorar sua capacidade técnica para lidar com essas doenças, evitando gerar sofrimento através da futilidade terapêutica.
O médico psiquiatra Kleber Lincoln Gomes, de São Paulo, foi o responsável pela apresentação intitulada “Expressão dos Cuidados Paliativos no Cinema”, que consistiu em uma colagem de sequências de filmes que lidam com terminalidade. Dentre os escolhidos, “Minha Vida Sem Mim”, “Cazuza” e “Fale com Ela” são referências obrigatórias para quem tem interesse no tema.
A platéia permaneceu atenta, comovendo-se durante várias sequências que levaram à reflexão, desde a comunicação de uma doença terminal até a despedida dos familiares e o luto.
Foi curioso constatar a preocupação que o cinema de todas as partes do mundo exibe com a questão da finitude, com filmes representando o pensamento do Japão, da Espanha, dos Estados Unidos e, naturalmente, do Brasil.
Difícil foi aturar a atuação sofrível de Christopher Lambert no clipe de “Highlander – O Guerreiro Imortal”, em que as canções do Queen traduzem de forma inspirada o drama de um personagem cuja vida não termina jamais.
O aguardado conferencista italiano Franco De Cono, do Istituto Nazionale dei Tumori di Milano, talvez tenha deixado a desejar ao abordar a “Atualização Terapêutica de Sintomas em Cuidados Paliativos”, concentrando-se no uso da metilnaltrexona (ainda não disponível no Brasil), em dose única subcutânea, para o tratamento da constipação induzida por opióides (1).
Um dos pontos altos do evento foi a mesa sobre terminalidade não-oncológica, que teve início com a palestra da geriatra carioca Claudia Burlá apresentando a demência como um modelo de doença própria para abordagem paliativa.
Ela defendeu a idéia de que a doença crônica permite que o profissional tenha tempo de preparar o paciente e a família para o desfecho. A Dra. Burlá mencionou ainda o célebre artigo da Geriatrics que aponta os erros na indicação de gastrostomia para pacientes com demência em fase avançada, uma vez que o procedimento não reduz o risco de broncoaspiração e não melhora o estado nutricional (2).
Em seguida, o cardiologista Ricardo Tavares, do INCOR (SP), abordou o difícil tema da insuficiência cardíaca terminal. Muitos profissionais aceitam a idéia de que os pacientes morram de câncer ou com demência avançada mas relutam em reconhecer que a insuficiência cardíaca também é uma causa frequente de morte. As discussões nesse campo precisam ganhar maior projeção, pois são de suma importância.
A enfermeira Rosângela Martins Conceição, do Hospital do ServidorPúblico Estadual de São Paulo, apresentou os benefícios da viasubcutânea para acesso a fármacos em fase avançada de doença. Indicações, principais drogas que podem ser usadas e técnica de punção estão descritas em um capítulo do Tratado de Geriatria e Gerontologia (3). Foi válida a discussão sobre essa via ainda subutilizada e que se torna de suma relevância no tratamento competente de sintomas ao final da vida.
O ponto culminante do congresso foi a mesa redonda “Problemas Éticos no Fim da Vida – A Resolução 1.805 do CFM”, coordenada novamente pelo Dr. Roberto D’Ávila, que reproduziu um dos momentos mais instigantes do último congresso nacional da SBGG (Porto Alegre, junho de 2008).
A apresentação inicial coube à intensivista catarinense Raquel Moritz, que falou sobre recusa e suspensão de medidas terapêuticas, convidando a platéia a refletir sobre o fato de que existem atualmente pacientes sem indicação de reanimação que são levados moribundos para a emergência dos hospitais e em seguida para as unidades de terapia intensiva, onde agonizam por dias ou semanas como objeto de tratamentos em que a própria equipe não acredita.
Ela apontou a necessidade de educação da sociedade e dos profissionais de saúde para situações de terminalidade, um dos objetivos da Academia Nacional de Cuidados Paliativos, afirmando que “negar terapia fútil não é sinônimo de matar” e apresentando a morte na terapia intensiva como um ato prolongado, um fato meramente científico, passivo e onde o paciente fica isolado.
Logo em seguida, ainda na mesma mesa, o médico José Eduardo Siqueira, do Paraná, conferiu sua brilhante palestra sobre ética e final de vida, citando o padre Léo Pessini ao dizer que “é insensato oferecer soluções técnicas para problemas essencialmente morais que estão presentes no processo de morrer”. Apontou a terapia intensiva como olugar em que impera a constatação de variáveis biológicas (como a qualidade da urina, o ritmo ao monitor, o valor do potássio sérico) enquanto a individualidade dos pacientes é relegada a um plano secundário. Afirmou que a cura é absolutamente eventual e que os profissionais precisam aprender a aliviar, cuidando da pessoa doente e não da doença da pessoa. Ao sumarizar a mesa, o Dr. D’Ávila tranquilizou a assembléia ao lembrar que o Conselho Federal de Medicina garante a todos os médicos o respaldo legal para tomar decisões em acordo com a família, com base em princípios éticos e nos fundamentos científicos da paliação, enquanto a polêmica em torno da resolução 1.805 continua a gerar atenção da mídia e caminha para um provável julgamento no Supremo Tribunal Federal. Ele enfatizou o compromisso fundamental do médico com o bem-estar do seu paciente, mesmo no momento da morte, sendo aplaudido de forma calorosa.
Por fim, a jovem terapeuta ocupacional Marilia Othero, do hospital Premier (SP), encantou a todos demonstrando de que maneira a atuação da profissional de sua classe permite que os pacientes em cuidados paliativos alcancem o máximo de independência funcional mesmo nas fases mais avançadas de doença.
Foi uma apresentação humana, repleta de exemplos do dia-a-dia que reafirmam a importância da terapia ocupacional. E a Dra. Maria Goretti Maciel, que atualmente dirige o serviço de cuidados paliativos de maior expressão no país, no Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo, encerrou o congresso com maestria discutindo as indicações da sedação paliativa, ressaltando as principais indicações do procedimento e a importância do uso de medicações de forma correta para que a sedação atinja a profundidade adequada a cada caso.
O serviço da Dra. Goretti foi essencial para uma das matérias mais sérias e informativas sobre cuidados paliativos escritas até hoje no Brasil (4).
Em resumo, o evento não trouxe grandes inovações em termos teóricos, mas serviu como oportunidade para reunir aqueles que se interessam pela paliação. Cabe um alerta, porém: os cuidados paliativos não correspondem a uma “receita de bolo” que pode ser preparada por qualquer um.
Muito pelo contrário, a complexidade do cenário de morte exige maturidade, humanidade e exímia competência técnica para garantir o melhor resultado possível. Resta a expectativa de que os próximos encontros continuem contribuindo para a divulgação do tema e o aprimoramento profissional.
Como nota final de cunho humorístico (para quem não estava presente, (claro), o vôo de retorno ao Rio foi um desastre: chovia torrencialmente no momento do pouso e o piloto teve que arremeter. Para os que não sabem o que isso significa, o avião parecia prestes a tocar o solo quando as turbinas rugiram e ele tornou a ganhar altitude para tentar novo pouso com visibilidade melhor após alguns minutos.
Os geriatras e profissionais da paliação do INCA-IV presentes no vôo vivenciaram a angústia na própria pele e alguns deles, em seu íntimo, certamente voltaram os pensamentos para a própria finitude.
Saudações PaliAtivistas!
Dr. Daniel Azevedo, membro da Comissão Científica da SBGG – RJ
Referências:
1. Thomas J, Carver S, Cooney GA et al. Methylnaltrexone for opioid-induced constipation in advanced illness. N Engl J Med 2008;358:2332-43.
2. Cervo FA, Bryan L, Farber S. Feeding tubes in patients with advanced dementia: the decision-making process. Geriatrics 2006;61:30-35.
3. Burlá C. Paliação: Cuidados ao Fim da Vida. In Freitas EV, Py L, Cançado FAX, Doll J, Gozoni ML eds. Tratado de Geriatria e Gerontologia. 2ª ed. Rio de Janeiro, Guanabara Koogan, 2006:1079-89.
4.http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI10399-15257-1,00-A +ENFERMARIA+ENTRE+A+VIDA+E+A+MORTE.html (conteúdo acessado em 01/12/08).