Gastrostomia em demência: análise das evidências em Cuidados Paliativos
A demência é composta por um grupo de sintomas como perda de memória e raciocínio, mudança de personalidade e dificuldade de realizar tarefas cotidianas como se comunicar, ir ao banheiro e se alimentar sem intervenção. Esses são reflexos de doenças degenerativas cerebrais como o Alzheimer, a mais comum delas, seguida da demência vascular e fronto-temporal. Estima-se que o número de pessoas com demência no mundo todo será superior a 35 milhões em 2050, segundo o Alzheimer Disease International. A enfermidade em idades avançadas também pode ocorrer sem razão aparente, isto é, sem doença cerebral diagnosticada.
O emprego de intervenções médicas invasivas nesses quadros é questionado pelas equipes médicas com experiência em Cuidados Paliativos. O ponto principal é o uso de ações que aumentam a carga de sofrimento enfrentada por pacientes e familiares sem a avaliação adequada dos efeitos no quadro geral, como a Gastrostomia.
Segundo a médica Cristiana Savoi, a Gastrostomia passou a ser difundida nos anos 80 e hoje é amplamente utilizada no mundo inteiro, mas com importantes variações geográficas e que não se devem ao local no mapa e sim às questões culturais.
Ela apresentou um levantamento do início dos anos 2000 o qual mostrava que nos EUA os pacientes institucionalizados com demência chegavam a 34% do índice dos pacientes que tinha gastrostomia, contra 7% no Reino Unido. Trabalhos mais recentes mostraram a redução desse índice mais especificamente no Reino Unido.
Os potenciais benefícios indicados nas pesquisas apontam que a Gastrostomia pode ajudar a prevenir condições debilitantes mais graves principalmente quando usadas em estágios precoces da desnutrição; reduzir o estresse do paciente que fica extremamente incomodado e assustado quando tosse e engasga com a dieta oral; pode preservar a sua capacidade de realizar suas atividades instrumentais diárias; aliviar a desidratação; manter o peso; além de dar tranquilidade à família que se preocupa ao ver a perda contínua de peso do seu parente. “É preciso lembrar que todo recurso médico pode ou não ser utilizado. É indicado quando o paciente não consegue se alimentar pela via oral por um período prolongado acima de 4 semanas ou por definitivo”, pontuou a médica.
As pesquisas mostram que a maioria dos médicos que optaram pela gastrostomia em quadros de demência avançada acreditavam estar fazendo algo em benefício da melhora da saúde de seu paciente. “Eles acreditavam que a ação iria proporcionar a melhora nutricional, a sobrevida e acarretaria em maiores chances de cicatrizar a úlceras de fricção”. Cristiana reforçou que cada caso precisa ser analisado com cautela antes da prescrição de qualquer tratamento.
De acordo com a paliativista, o índice de complicações secundárias que envolvem o procedimento não é baixo, de 30% a 50%, ainda que sejam complicações menores como extravasamento, celulite perístoma, deslocamento e obstrução de sonda, entre outros. “E apesar de ser um procedimento tecnicamente simples do ponto de vista cirúrgico, não tem grandes dificuldades, têm uma mortalidade que não é desprezível em torno de 1% a 2%. Logo, como todo procedimento médico tem que avaliar o risco e o benefício”, acrescentou.
Os riscos da Gastrostomia são altos, mas, a equipe de saúde não pode se afastar de sua missão que é a de solucionar o problema do paciente que permanece sem se alimentar. Segundo a palestrante há alternativas de ações que precisam ser divididas, compartilhadas com os familiares. “São passos que darão muito trabalho, como manter a alimentação por via oral possível. Claro que ainda há risco de aspirar fluidos, não trabalhamos com garantias, não trabalhamos com ausências de riscos, viver é perigoso”, disse.
Outras ações simples foram enumeradas pela médica como conduzir a mão do paciente no ato de se alimentar. Primeiro com a colher vazia, depois ajudando para ele se servir. São pequenos estímulos para reanimar e lembrá-los sobre o ato de se alimentar. “É preciso ter uma equipe de cuidadores muito boa disponível. Na alimentação oral gasta-se em média 70 minutos contra 25 minutos na Gastrostomia”, disse a médica. Mas, segundo ela, o esforço vale muito pelo retorno em qualidade de vida do paciente.
A decisão desse recurso precisa ser estabelecida de forma compartilhada com a família. “Envolve orientação, apoio constante e recursos humanos. São muitas as dificuldades. Precisaremos de uma farmacêutica para ajudar, porque teremos dificuldade para administrar medicamentos nesses pacientes em fase de disfagia avançada”, esses são alguns dos pontos a serem considerados, segundo Cristiana.
A médica finalizou com um relato pessoal de seu avô que, aos 91 anos tinha demência de causa não cabível e sem ter nenhuma outra comorbidade física.
Com uma excelente equipe de cuidados 24 horas por dia o quadro evoluiu com úlceras de pressão superficiais, principalmente na região do sacro, com pneumonias repetidas nos últimos meses e muita perda de peso. Na fase da disfagia progressiva a dieta e uma série de recursos foram adaptados. Ele não tinha músculo para as atividades simples e a ingestão estava aquém frente à sua perda de peso. Várias vezes tentou-se indicar a Gastrostomia. Em um esforço híbrido de neta e médica paliativista, Cristiana Savoi enviava artigos, argumentava, tinha o desafio de fazer reuniões familiares e com os colegas e, assim, situação se sustentou por um tempo. No processo, sua avó faleceu. Mesmo as pessoas ao redor acreditando que o avô não estava percebendo o que acontecia, no dia seguinte ele parou de comer. Ele ficou duas semanas nessa situação, sem nem mesmo engolir a papinha. “Nessa situação de angústia, a decisão foi ceder à sonda”, contou Cristiana.
Ela acrescentou que essa experiência lhe trouxe uma lição. “Entendi que no paliativo temos que fazer o melhor possível e levar em consideração uma série de aspectos para além das evidências”.
Cristiana Savoi é médica, pós-graduada em Cuidados Paliativos pela Universidade de Milão, membro colaborador da Sociedade de Tanatologia e Cuidado Paliativo de Minas Gerais (SOTAMIG) e coordenadora da pós-graduação em Cuidados Paliativos da Faculdade Unimed. E esteve entre os palestrantes nacionais do VII Congresso Internacional Cuidados Paliativos da ANCP, realizado entre os dias 21 e 24 de novembro de 2018.