Hidratação artificial: uma decisão complexa para pacientes, familiares e equipe de saúde
Os desafios da medicina estão além do rápido diagnóstico de doenças e da assertiva prescrição de tratamentos. A rotina da equipe de saúde passa também no acompanhamento dos aspectos emocionais e culturais dos pacientes e das famílias que se deparam com diagnósticos de doenças graves, que podem levar à morte. Esses fatores podem interferir na interpretação desse núcleo, que é o centro do cuidado, quanto aos sintomas periféricos da enfermidade e na aceitação dos recursos terapêuticos recomendados para o quadro clínico.
A mestre em ciências da saúde pela UNIFESP, a paliativista Gisele Santos, na palestra “Soro e hidratação em fim de vida: evidências e experiência”, realizada durante o VII Congresso Internacional de Cuidados Paliativos da ANCP, tratou dos conflitos de interpretação entre a tríade equipe de saúde, paciente e família, no que tange às decisões para a ingesta e a hidratação de pacientes com doenças em estágio avançado.
A médica paranaense observou que todos os dias na enfermaria, no ambulatório, os profissionais se deparam com familiares que acreditam que o uso do soro irá melhorar a saúde geral, física e mental do paciente. “Essas crenças foram comprovadas por estudos. Acreditam que irá melhorar a ação dos medicamentos; que irá reconstituir a função do organismo, manter a dignidade da pessoa e que optando pelo uso do soro estarão zelando pelo paciente”, contou Gisele.
Ela reforçou que, de fato, o alimento e a hidratação em nossa cultura, sobretudo a latina, são como formas de afeto e isso não é diferente na percepção da família e do paciente. “Para as famílias a hidratação artificial segue o mesmo contexto e ainda reduz o estresse psicológico dos cuidadores, traz a sensação de que o paciente está sendo bem cuidado, a sensação de estar fazendo algo”, reiterou.
Por esse contexto cultural a paliativista instruiu o acolhimento da família e dos pacientes ao informar que não será prescrita a hidratação artificial. “Temos que explicar com muita calma as razões dessa decisão. Mas, recomendo uma abordagem mais direta e que seja repetida, sempre que necessário”, explicou.
Gisele mostrou pesquisas nas quais familiares enlutados relataram que sentiram culpa, angústia e pesar por não terem insistido na hidratação artificial. A maior preocupação era não ter a certeza de que o familiar não morreu de sede, não sofreu ao ter sido submetido aos protocolos de cuidados de fim de vida.
No entanto, de acordo as pesquisas, a ótica do paciente era diferente. Elas revelam que eles desejariam usar a hidratação artificial apenas se fosse melhorar a sua qualidade de vida; que o uso do soro deveria ser discutido ao longo do curso da doença junto com decisões importantes, como ser submetido à ressuscitação cardiopulmonar, enquanto possuem condições de participar das decisões; gostariam de uma tentativa de hidratação caso não consigam ingerir líquidos; sinalizaram o desejo de consumir líquidos e o entendimento de que a hidratação é uma necessidade básica; sinalizaram ainda que gostariam de ser guiados pelas opiniões dos seus médicos.
“O paciente quer participar das decisões. Por isso o profissional de saúde precisa mostrar as evidências científicas para que o paciente se sinta seguro quanto ao tratamento recomendado. O correto não é perguntar para o que ele deseja que seja feito e sim mostrar a evidência daquilo que eu, enquanto profissional, considero adequado para o seu caso”, afirmou Gisele.
De acordo com a especialista, para o paciente a decisão quanto ao uso da hidratação artificial no fim de vida é influenciada pelo conhecimento que ele tem do risco e do benefício do seu uso. Ela exemplificou com um caso cotidiano. “Digamos assim, se eu estou em um local em que eu possa fazer uma hidratação em domicílio por hipodermóclise, pode ser que o paciente aceite. Mas, se eu indicar que ele precisa ir para o hospital e que terá que ficar internado, longe do convívio com a família, pode ser que ele não queira”.
O ponto mais crítico apresentado quanto ao aceite ou questionamento da hidratação artificial por parte do paciente, segundo Gisele, parte da aceitação do fim da vida. “As pessoas que aceitam melhor a sua terminalidade, que estão entendendo o que está acontecendo, tendem a não querer a hidratação artificial. Aquela que não está aceitando a sua morte, que não aceita a sua finitude vai tender a querer a hidratação”, comentou. Para a médica, o olhar da equipe com o cuidado paliativo é fundamental nesse ponto, pois é preciso mostrar para o paciente quais ações terão impacto para minimizar sua dor e garantir seu conforto.
A geriatra apontou o terceiro olhar sobre a hidratação em fim de vida, isto é, a interpretação da equipe de saúde. O pré-requisito para a hidratação e a alimentação enteral é a indicação de tratamento médico, essa foi a premissa básica mencionada por Gisele. “Sendo um tratamento ele precisa ter um objetivo a ser alcançado. Há tempo para prescrição, manutenção e retirada da ação e a decisão precisa ser em equipe”, comentou.
A médica citou que às vezes a hidratação artificial é indicada porque o paciente está em delírio por desidratação e, com isso, acumulou opioide na corrente sanguínea. “Enquanto não melhorar o delírio e o paciente não despertar eu continuo com a hidratação, afinal, meu objetivo não foi atingido”, explica.
A partir das evidências científicas, Gisele mostrou que a atitude da equipe frente à hidratação artificial também é influenciada por valores e crenças pessoais.“Isso vai influenciar na nossa decisão e em como vamos comunicar isso para os pacientes e seus familiares”, ponderou.
As evidências apresentadas pela paliativista concluem que os profissionais com experiência em cuidado no fim de vida tendem a indicar menos a hidratação artificial e, quando indicam, são em um volume menor do que os demais profissionais. No entanto, a especialista mostrou que há tanto as evidências favoráveis quanto contrárias à hidratação artificial.
Quem concorda com a hidratação artificial sustenta a indicação no fato de a desidratação acarretar mal estar ao paciente, sensação de sede, confusão mental, inquietação, fraqueza muscular, insuficiência renal e sensação de boca seca. Alguns estudos sugerem que uma hidratação leve, menor do que um litro por dia, melhoram a função renal e, consequentemente, diminuem o acúmulo metabólico de medicamento reduzindo o risco de Delirium.
O posicionamento contrário parte do princípio de que não há evidência científica e, nesse caso, pode causar aumento da secreção pulmonar, edema pulmonar e periférico, náusea e vômito, ascite, aumento do risco de broncoaspiração, de infecção e de Delirium. O argumento principal é que a boca seca não melhora com a hidratação porque ela é consequência da doença e dos efeitos dos remédios. Os estudos apresentados por Gisele sugerem ainda que a desidratação pode levar a um aumento de cetonas no organismo o que levará a uma sedação leve e a uma analgesia, efeito da desidratação que pode ser benéfico.
Tendo vertentes contrárias e favoráveis Gisele fez uma reflexão filosófica. “O processo natural de morrer é associado pelo metabolismo por uma menor sintetização de água”. Ela acrescentou que os animais domésticos, como cachorro e gato, no final da vida vão parando de tomar líquido. “Com as plantas ocorre a mesma coisa. A terra vai ficando úmida, a água no pratinho sobra”, comentou.
Em suma, mais do que apresentar as evidências científicas sobre o assunto, a médica reforçou a importância do respeito da equipe médica no acompanhamento dos fatores psicológicos que cercam os pacientes e suas famílias. Também reafirmou a importância dos profissionais de saúde assumirem seus papéis técnicos na condução dos tratamentos, sempre respeitando a vontade dos pacientes.
Gisele Santos é mestre em ciências da saúde pela UNIFESP, geriatra com área de atuação em cuidados paliativos e ex-presidente da Regional Sul da ANCP 2016-2018. E esteve entre os palestrantes nacionais do VII Congresso Internacional Cuidados Paliativos da ANCP, realizado entre os dias 21 e 24 de novembro de 2018.