Histórias que se repetem, ciclos que se renovam
A primeira vez que ouvi sobre Cuidados Paliativos foi em 2011, como editora de uma revista especializada em oncologia. Ao conversar com os profissionais, todos eram unânimes: não era mais possível falar sobre câncer sem falar de Cuidados Paliativos. O cuidado do paciente só seria completo se ele fosse tratado em toda as esferas – e elas vão muito além da questão física.
Fiquei intrigada com a proposta desse trabalho e fui atrás de quem poderia falar sobre o tema com propriedade. Sugeriram que eu conversasse com a médica de família Maria Goretti Maciel, diretora do Serviço de Cuidados Paliativos do Hospital do Servidor Público Estadual (HSPE). Conheci-a nesse mesmo hospital, numa tarde ensolarada de terça-feira. Durante a entrevista, falava com autoridade sobre final de vida, cuidados integrais, autonomia, dignidade e ética sem que esse conhecimento tirasse sua delicadeza e bom humor.
Mais do que encantada, saí de nossa conversa convertida – convertida à causa dos Cuidados Paliativos, que pareciam proporcionar uma qualidade de vida excepcional para pacientes em condições tão dolorosamente difíceis. Passei a pesquisar e escrever sobre o assunto, tentando encontrar maneiras de torná-lo mais visível ao público.
Daquela entrevista até hoje já se vão quase cinco anos. Abandonei a oncologia e hoje me dedico a escrever sobre o envelhecimento. Os Cuidados Paliativos, no entanto, me acompanham. Vejo um movimento que vai ganhando força, espaço e reconhecimento nas discussões sobre saúde. É encorajador constatar quanto já se caminhou nesse breve período.
Como jornalista, acredito que parte de nosso papel é informar e educar o público sobre questões importantes – e há tantas! Mas acredito que o final de vida deve ocupar uma das top 5 posições na lista de assuntos primordiais. Hoje, mais do que nunca, é preciso estimular esse debate.
Conto essa história para introduzir o texto que segue, da repórter Fernanda Figueiredo.
Fernanda é estudante de jornalismo e parte da equipe de comunicação da Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP). Aos 20 anos, começa a descobrir as belezas da profissão.
Em um papo recente, conversamos sobre a possibilidade de ela visitar um serviço de Cuidados Paliativos. O gancho seria a síndrome de burnout, que ganhou visibilidade nas últimas semanas depois que a foto de um médico chorando circulou as redes sociais. Na matéria ela também poderia contar suas impressões sobre Cuidados Paliativos.
Fernanda se mostrou animada, mas também preocupada quanto à sua reação ao presenciar in loco um tema tão difícil. E era exatamente esse o objetivo: dar a ela a oportunidade de escrever sobre algo fundamental, mas, principalmente, gerar uma reflexão sobre o assunto, artigo de luxo nos dias de hoje.
Ao voltar da visita, Fernanda parecia, como eu há cinco anos, movida com o que os Cuidados Paliativos podem fazer, por pacientes, familiares e profissionais.
Confira seu relato a seguir.
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Primeiro de abril. Hospital do Servidor Público Estadual. A pauta era visitar um serviço de Cuidados Paliativos e conversar com a equipe sobre a síndrome de burnout, condição cada vez mais comum entre profissionais que trabalham com pacientes em final de vida. Queria que a realidade fizesse jus ao Dia da Mentira e que isso não fosse verdade tão frequente. Me surpreendi: naquele lugar, realmente não era.
Tudo era muito novo. Embora já tivesse decorado o conceito, meu contato com Cuidados Paliativos é extremamente recente. A síndrome de burnout era mais novidade ainda. Ao pesquisar o tema, fui compreendendo do que se tratava e percebi que nem tudo eram flores. Muitos profissionais que lidam direta ou indiretamente com pacientes em final de vida passam por um esgotamento físico e mental – no Brasil, esse esgotamento foi batizado de “síndrome do fósforo queimado”.
Fui acompanhar a rotina de pessoas que eu acreditava viverem isso diariamente. Ansiosa, cheguei mais cedo e fui recebida pelo assessor de imprensa do HSPE Ivan Verona. No caminho de um prédio do hospital para o outro, Ivan me dizia que eu me apaixonaria. Enquanto a doutora Goretti Maciel, diretora do serviço de Cuidados Paliativos do hospital, não chegava, conversamos sobre o hospital, o jornalismo e a medicina. Logo me dei conta de que ele estava certo.
Goretti chegou dez minutos atrasada, não sem mandar mensagens atenciosas pelo celular avisando de seu paradeiro. Cumprimentamo-nos e ela me ofereceu um copo d’água. “Uma água sempre faz bem”, disse. Naquele pequeno gesto, uma mostra do que Goretti faz de melhor: cuidar.
A ala no 12º andar era movimentada. Como o hospital estava em reforma, a enfermaria de Cuidados Paliativos estava dividindo o espaço com a ala de Neurologia. Por enquanto, havia apenas três leitos disponíveis para os Cuidados Paliativos e os pacientes precisavam compartilhar o quarto. O lado positivo disso eram os laços de solidariedade que muitas vezes se formavam, quando a família de um paciente se sensibilizava com quem estava ao lado e ajudava na atenção e cuidado.
Fomos a uma sala mais reservada para conversar. No mural, matérias que a inspiravam, como histórias de amor entre idosos, ou colunas referentes a assuntos éticos, que ajudavam no exercício de refletir sobre suas ações como pessoa e profissional.
“Eu que comecei essa brincadeira aqui no hospital, quase 15 anos atrás”, contou, num tom bem humorado. Goretti é médica de família e aos poucos foi descobrindo pessoas que faziam Cuidados Paliativos, literatura sobre o tema, grupos de discussão na Internet. Foi pesquisando e aprendendo sobre o assunto.
“Comecei a usar o conhecimento como podia e meu chefe me deu oportunidade de expandir. Conseguimos contratar uma psicóloga e uma enfermeira e montamos uma mini equipe de Cuidados Paliativos, que visitava pacientes com câncer. Daí começamos a fazer barulho dentro do hospital. Depois de 2,5 anos, a diretora resolveu abrir uma enfermaria de cuidados paliativos. Havia alguns leitos desativados no 5o andar e para lá fomos”, lembrou.
A equipe hoje é formada por médicos de família, clínicos, oncologistas, geriatras, psicólogos, entre outros profissionais. As atividades são divididas entre atendimento domiciliar, ambulatório, enfermaria e interconsultas no hospital todo. O núcleo tem cerca de 200 doentes em casa, que recebem acompanhamento por telefone.
Goretti diz que o trabalho é gratificante. Ela acredita que é possível viver bem com uma doença que ameaça a vida, assim como morrer bem. “Os resultados são muito nítidos”, explica.
Nossa conversa foi interrompida. “Doutora, tem um evento muito importante e estão requisitando sua presença. É o aniversário da Carina!”, chamou Verona.
Carina é uma ex-funcionária do hospital, diagnosticada com câncer no intestino, que completava 31 anos naquele dia. Apesar das metástases agressivas, seu estado de saúde era bom e ela ainda não precisava de acompanhamento em casa.
Juntei-me ao grupo para cantar parabéns e fiquei emocionada ao presenciar a empatia e a intimidade da paciente com a equipe que cuidava dela. Era muito claro que havia um relacionamento entre as duas partes, não apenas o simples tratamento de uma paciente.
Um dos presentes da aniversariante foi a alta do hospital. Teve bolo, lágrimas e agradecimento.
Carina é muito grata pelo apoio que recebe. Decidiu não fazer mais a quimioterapia quando soube que não seria um tratamento curativo, mas apenas um prolongamento de vida, sem qualidade. “Confesso que foi muito bom para mim vir pra cá. Me senti muito amparada nos momentos que precisei estar internada. Senti um acolhimento muito maior do que quando estava sendo tratada em outras clínicas. Eu visto mesmo a camisa do cuidado paliativo”, contou.
Na cama ao lado estava Dona Henriqueta, com o diagnóstico de câncer semelhante ao de Carina, mas em estado mais avançado. Suas irmãs e filhas estavam presentes. Com o final próximo, o ambiente era sereno e tranquilo, apesar da tristeza. O barulho do aniversário de Carina não incomodou a vizinha e suas visitas.
“Ter momentos finais com dignidade, com calma – isso é o que queremos aqui”, disse a médica residente Glauciele Souza, na equipe há apenas um mês. “Está sendo uma experiência muito boa. Aqui temos uma visão muito diferente de todo o processo de uma doença e da morte. A equipe é muito acolhedora e consegue paliar a gente também”, disse.
Os profissionais envolvidos com Cuidados Paliativos têm consciência de que, para melhorar o sofrimento do paciente e ajudá-lo a lidar da melhor forma suas questões físicas, emocionais e espirituais, é necessária uma forte rede de apoio. Dividir as angústias com os colegas de trabalho é essencial. Procurar apoio quando tudo estiver muito pesado. Um ajuda o outro, para poder auxiliar o paciente – uma boa estratégia para driblar a temida síndrome de burnout.
“Você só consegue cuidar bem do outro se você se cuidar… Não, bolo de chocolate não”, brinca Goretti, recusando os doces de aniversário da Carina e deixando mais leve um assunto tão sensível. Saí com a certeza de que tudo nessa vida é uma passagem. E tem muita gente preparada para ajudar.