O desafio de ofertar cuidados paliativos à população carcerária
Jovem de 24 anos, uma massa significativamente grande no testículo: câncer em estágio avançado com metástase abdominal. Às questões naturalmente aflitivas para a equipe médica – Como dar a notícia? Que opções de tratamento estão disponíveis, se é que serão efetivas? –, soma-se o fato do paciente ser um dos mais de 233 mil detentos do Estado de São Paulo. Como prepará-lo para lidar com o fato de que ele pode estar vivendo seus últimos meses e que não terá o tempo necessário para cumprir sua pena e voltar à liberdade?
Único hospital geral exclusivo para atender as demandas de saúde – clínicas, cirúrgicas ou psiquiátricas – por meio de assistência hospitalar e ambulatorial da população carcerária paulistana, o Centro Hospitalar do Sistema Penitenciário do Estado de São Paulo acaba sendo o cenário recorrente de situações como a descrita, que é real. Foi para reduzir a angústia da equipe diante de casos como estes que desde 2015 o CHSP passou a adotar um protocolo para avaliar os pacientes, a fim de definir a oferta de cuidados paliativos. A importância de ter um procedimento claro de condução é essencial em um ambiente tão excepcional.
“Um paciente diagnosticado com câncer recebe a indicação de voltar para casa e fazer quimioterapia; aqui, ele volta para uma cela e são tantos os meandros para retirá-lo novamente que as chances de ele perder o tratamento são enormes”, explica a Dra. Tatiana Malavasi Sales, diretora técnica do CHSP.
É preciso vencer uma grande burocracia em termos de agendamentos, além do preconceito, para que pacientes privados de liberdade em cuidados paliativos possam receber os tratamentos indicados. A logística é igualmente complexa. Afinal, para a realização de um simples exame é preciso contar com efetivo da escolta. “A escolta era um problema crônico – nunca tinha – mas foi resolvido. Hoje conto com duas escoltas por dia”, afirma Dra. Tatiana. Apesar da melhora, nem sempre esta quantidade se mostra suficiente. “Já tivemos dois pacientes renais crônicos fazendo diálise todos os dias, saindo logo cedo pela manhã e voltando às três da tarde, ocupando as escoltas”, diz.
Cuidados paliativos na prisão
Mais do que todos os aspectos práticos, no entanto, uma das maiores preocupações da médica é preparar o paciente direcionado para cuidados paliativos para entender sua condição de fim de vida. “Precisamos saber a melhor forma de falar com ele e o que fazer para que ele viva este período da melhor forma possível dada as condições que temos”, afirma.
Para ajudar neste processo, Dra. Tatiana têm buscado apoio com especialistas em cuidados paliativos. Uma grande contribuição veio em forma de uma aula de três horas de duração ministrada pela Dra. Veruska Menegatti, representante e docente do Instituto Pallium Latinoamerica no Brasil e chefe da equipe médica do Centro de Atendimento de Intercorrências Oncológicas do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo). Para a Dra. Veruska foi uma experiência completamente nova. “Nunca havia entrado em uma cadeia”, diz. “A platéia realmente me emocionou, pois foi visível a percepção da equipe de que eles lidam com uma população que está sob cuidados do Estado e que morre muito mal. Eles estavam procurando fazer algo diante disso”, destaca. Até mesmo a preparação da aula foi um desafio. “Há uma carência estrondosa de informação sobre a oferta de cuidados paliativos em ambientes prisionais. Fiquei me questionando o que eu poderia falar para uma equipe que trabalha com uma população tão excluída e fragilizada, como são os indivíduos privados de liberdade. Foi difícil encontrar referências”, afirma.
Dentre as práticas consideradas adequadas pelos Cuidados Paliativos, Dra. Veruska compilou algumas que poderiam ser apropriadamente adotadas no CHSP, considerando-se a demanda de cuidados trazida pela equipe de profissionais do próprio serviço. Entre elas, a tentativa de ofertar dietas diferenciadas voltadas para as necessidades de pacientes com dificuldades específicas atreladas à alimentação e/ou em fase final de vida; a possibilidade de contato com um representante de sua religião para conforto espiritual e elaboração de questões existenciais latentes; o respaldo para que possam expressar decisões de fim de vida, como onde gostaria de ser enterrado e quais as diretivas antecipadas de vontade; transferência para um presídio mais próximo de sua casa, aproximando-os dos familiares e amigos; horários de visita mais flexíveis.
A especialista destacou a importância de se buscar formas de aproximar a família do preso. E dedicou um bom pedaço de sua fala para abordar técnicas de comunicação de más notícias. “Uma grande dificuldade é justamente a aceitação dos muito jovens; muitas vezes são pessoas com conhecimento precário em termos educacionais, que não entendem o diagnóstico, nem o que está acontecendo e, desta forma, têm mais dificuldades em compreender que realmente estão morrendo”, comenta.
Mais que tudo, porém, Dra. Veruska procurou sensibilizar os profissionais da equipe sobre a condição do paciente que atendem. “Ao encarar a possibilidade do final da vida, qualquer pessoa sente que tem pendências a serem resolvidas; imagine o que é esta sensação para quem tem uma culpa julgada e sentenciada e descobre que não terá tempo para resolver isso em liberdade”.
As ações no CHSP
O CHSP não atende urgências. Possui 375 leitos instalados dos quais 251 são operacionais, divididos em quatro unidades, três masculinas e uma feminina e recebe algo entre 100 a 120 pacientes por dia, de segunda a sexta-feira para atendimentos ambulatoriais. Em média, possui 170 pacientes internados/dia, muitos de longa internação. Desde 2015, quando foi criado o protocolo, 60 detentos foram direcionados para receber cuidados paliativos, a imensa maioria com o diagnóstico de neoplasias. (Vale mencionar a forma como grupo decidiu conduzir casos de HIV positivo – com ou sem AIDS: os pacientes são acompanhados habitualmente pelo ambulatório de infectologia e só são incluídos no grupo de cuidados paliativos se desenvolvem alguma complicação que não seja infecciosa e demande internação, como sarcoma de Kaposi, linfomas etc.)
Entre as principais ações de cuidados paliativos está a busca por envolver a família com o paciente, o que se configura como um desafio. “Muitas vezes, os parentes não têm condições de vir, pois moram no interior; ou também estão presos”, explica. Em muitos casos, o crime cometido é o que distancia. Um exemplo é o de um detido por espancar a esposa. Portador de esclerose lateral amiotrófica, tudo o que ele desejava era ter contato com as filhas, que não o perdoavam. Após vários contatos e apelos, a equipe conseguiu convencê-las e elas foram visitá-lo.
Aliás, maior flexibilidade nos horários e dias de visita é uma das conquistas do CHSP para os presos em cuidados paliativos, ampliando, assim, a possibilidade da aproximação familiar. A família é um ponto importante também para auxiliar na condução das conversas sobre as diretivas de vontade, totalmente fechadas com o paciente e levadas a uma comissão de bioética que respalda as decisões (como não entubar ou fazer RCP). Outra iniciativa relevante é investigar se o preso conta com um advogado para entrar com um pedido de indulto humanitário.
Com tudo isso, a angústia da equipe diminuiu. “Hoje, os profissionais se sentem seguros em relação aos cuidados paliativos exclusivos na fase terminal, algo que a equipe tinha muita dificuldade de lidar”, destaca a Dra. Tatiana. Segundo ela, o time cita como positivo a criação, em novembro do ano passado, da Comissão de Bioética, um grupo para analisar os casos mais difíceis e corroborar as decisões tomadas.
Atualmente, o maior desejo da Dra. Tatiana é ter um paliativista na equipe. “Acredito que faria diferença contar com alguém especializado, que saiba como conduzir todas as questões que aparecem, que tenha respaldo técnico e que, principalmente, traga uma visão mais abrangente dos cuidados possíveis no final de vida, nos ajudando a aplicar na realidade do sistema prisional”, afirma.
Diante de sua preocupação constante e esforços para melhorar o atendimento prestado, não é incomum Dra. Tatiana ser questionada sobre o que faz com que ela se dedique a melhorar a condição de vida – independentemente da duração indicada pelo prognóstico – de pessoas que cometeram crimes, alguns deles, terríveis. A resposta é dada sem um segundo de hesitação.
“Não cabe a nós julgar. A pessoa à nossa frente foi declarada culpada e está cumprindo a pena prevista pela sociedade. O que é preciso lembrar é que uma pessoa presa é aquela que foi desprovida de sua liberdade. Só da liberdade. E o que vemos é um sistema e uma sociedade que acaba fazendo com que ela seja desprovida de uma série de outras coisas. Nós, responsáveis por sua saúde, não podemos ser mais um elemento que aumente isso”, finaliza.