O que oferecer diante do final?
A justificativa do juiz Edson Fachin na última segunda feira (19/10) de liberar um medicamento não testado para o tratamento de uma paciente cuja narrativa indicava estar em “estado terminal” foi recebida pelos profissionais que lidam com cuidados paliativos de forma tão dolorosa que se tornou impossível ficarmos em silêncio.
Antes de mais nada, é muito importante perguntar: o que se nomeia por “estado terminal”, expressão que vem sendo usada repetidamente pela justiça? Do ponto de vista clínico, sabe-se que se trata de um termo que causa confusão, pois é usado para nominar fases diferentes da evolução de uma doença.
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), uma doença terminal é aquela que progride a despeito de tratamento específico e que cursa sem controle. Por outro lado, seu portador pode estar aparentemente muito bem e sobreviver a esta condição por meses ou anos, desde que receba atenção adequada e proporcional, com foco no controle dos sintomas e na sua qualidade de vida.
O tratamento que tem por objetivo esse cuidado essencial para portadores de doença terminal é, desde 1975, chamado de cuidados paliativos. Em 1990 ele foi oficialmente recomendado pela OMS como um dos pilares fundamentais da assistência ao doente com câncer. Em 2002 a recomendação se estendeu a toda e qualquer doença ou condição de vulnerabilidade que possa ameaçar a continuidade da vida. Em 2014 a OMS reconheceu que 40 milhões de pessoas no mundo necessitam desta assistência e, por isso, passou a recomendar aos países que implementem políticas públicas que incluam o cuidado paliativo na atenção integral à saúde. O tratamento deve ser iniciado o mais precocemente possível e deve abranger doentes de todas as idades. Paliar é possível e imperioso para pacientes nessa condição.
No final da evolução dessas doenças, a pessoa entra numa fase bem descrita pela medicina como fase final da vida, quando se instala uma cadeia de eventos relacionados à sua condição e que, de forma irreversível, levará o doente à morte. Esse processo costuma durar dias ou semanas, dependendo do comportamento natural da doença em curso. Nesse período, o cuidado paliativo é essencial para ajudar a minimizar o sofrimento do doente, através do controle impecável dos sintomas, da preservação da identidade da pessoa, e da família, por meio do acolhimento aos familiares que sofrem com o afastamento do ente querido.
Medicamentos específicos para o controle da dor, ditos analgésicos, devem ser usados de forma competente e segura para minimizar a dor física. Outros medicamentos são usados para controlar sintomas igualmente importantes. Decisões são tomadas a cada momento, sempre contemplando o bem-estar da pessoa e levando em consideração sua história de vida. Uma equipe de vários profissionais muito bem treinados se esmera para oferecer o melhor cuidado. E a morte pode se tornar um evento suave, que encerra de forma natural uma história de vida.
Nas duas fases descritas o doente jamais deve ser enganado. Ele nunca deve ser alvo de tratamentos experimentais ou não testados, sob o risco de agravo de sintomas – salvo se, de sã consciência e de forma esclarecida, concordar em participar de estudos clínicos bem conduzidos, cujos resultados auxiliem no desenvolvimento de novas perspectivas de tratamento. Esses estudos são avaliados e aprovados por um comitê de ética em pesquisa. Ainda assim, os pacientes devem ser muito bem paliados e protegidos de possíveis efeitos do medicamento, sob a responsabilidade de assistência médica responsável e coerente. Falsas expectativas servem apenas para ampliar o sofrimento emocional de todos.
No dia 6 de outubro a Unidade de Inteligência da revista The Economist divulgou um importante estudo sobre a assistência devida a pessoas em fase final da vida. Trata-se de um conjunto de indicadores que resulta num Índice de Qualidade de Morte, que varia de 0 a 100 pontos. Aplicado a 80 países de todos os continentes, o índice revela que o Brasil atinge pobres 42,5 pontos, o que nos coloca em posição de número 42 entre os 80 países estudados e numa das piores condições na América.
Essa desonrosa posição está diretamente relacionada à rara oferta de cuidados paliativos aos que adoecem e morrem por doenças crônicas em nosso país. Calcula-se que, das supostas 950 mil mortes anuais por essas doenças, apenas 0,3% recebam alguma forma de atenção desta natureza. Pelo que sabemos, estes poucos pacientes foram assistidos com cuidados paliativos nas últimas horas de vida, indicando desconhecimento de profissionais de saúde e sociedade acerca das muitas possibilidades deste tratamento no curso da doença, em conjunto com medidas que visem seu controle.
A correção desta grave distorção demanda esforços absolutamente alcançáveis, que resultam numa equação positiva em termos de custos para o sistema de saúde, em todos os níveis:
- É necessário formar equipes capacitadas para essa assistência. O ensino dos cuidados paliativos deve ser incorporado na grade curricular do curso de graduação de todos os profissionais da área da saúde. Trata-se de uma condição essencial para que a atenção aconteça de forma natural, como em qualquer outra área básica da medicina.
- Medicamentos eficientes para o controle da dor e de outros sintomas precisam ser disponibilizados em todo o território nacional. No entanto, a maioria dos municípios brasileiros ainda não oferece o acesso necessário a eles. Hospitais não disponibilizam analgésicos mais potentes e profissionais não sabem prescrevê-los.
- Uma política bem formulada que coloque o cuidado paliativo como elemento fundamental na rede de saúde em todos os níveis: atenção primária, assistência domiciliária, unidades ambulatoriais, hospitais gerais, hospitais especializados em doenças ameaçadoras da vida e unidades de atendimento para doentes em fase final da vida, quando necessárias.
Porém, nada disso terá valor enquanto não formos capazes de dialogar com os brasileiros de forma correta e aberta sobre o tema. Enquanto os cidadãos ainda forem surpreendidos por decisões judiciais que reafirmem o preconceito e o desespero diante do enfrentamento de uma doença terminal. Enquanto falsas esperanças forem enaltecidas e as palavras forem usadas de forma inadequada.
Muito sofrimento desnecessário será perpetuado à quase totalidade de pessoas que morrem no Brasil e que poderiam ser assistidas de forma adequada, proporcional, respeitosa e baseada na ciência durante todo o curso de sua doença, com o compromisso de todos os profissionais envolvidos. O custo desse sofrimento é imensurável para um povo.
A Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP), entidade que reúne os profissionais envolvidos nesta prática desde 2005, reafirma seu compromisso com o desenvolvimento dos cuidados paliativos no Brasil e pede aos magistrados que, em seus atos, defendam as boas práticas relacionadas à terminalidade da vida. O cuidado paliativo representa, neste tempo, o direito inalienável do ser humano à assistência adequada e à dignidade, defendidas na Constituição Federal.
Maria Goretti Maciel é médica de família, diretora do Serviço de Cuidados Paliativos do Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo e presidente da Academia Nacional de Cuidados Paliativos