O Papel dos Cuidados Paliativos frente a situações de desastre
O rompimento de uma barragem de rejeitos, da Vale, na cidade de Brumadinho em Minas Gerais, ocorrido em 25 de janeiro de 2019, na mina do Córrego do Feijão, ocasionou diversos prejuízos para a população. Até o dia 10 de abril de 2019 foram constatados 225 mortos e 68 desaparecidos de acordo com a Defesa Civil. O local foi acometido por 12 milhões de metros cúbicos de lama e rejeitos, o que causou destruição de uma parte da sede da empresa, casas e propriedades da região. Além disso, a fauna e a flora foram seriamente comprometidas, incluindo o Rio Paraopeba, que ainda se encontra “morto” em alguns locais. Ademais, a economia do país foi comprometida com a queda de ações e retirada de investidores do mercado financeiro.1,2
De acordo com a Defesa Civil, o conceito de desastre significa o resultado de eventos adversos que podem ser naturais ou causados pelo ser humano. Ele ocorre sobre um território ou ecossistema e causa danos, os quais englobam danos humanos, materiais e/ou ambientais, além de consequências negativas no âmbito econômico e social.3 Segundo Narváez e colaboradores, para que haja uma situação de desastre, precisa da combinação de quatro fatores importantes para a Saúde Pública: “a ocorrência de uma ameaça natural; uma população exposta; as condições de vulnerabilidade social e ambiental desta população; e insuficientes capacidades ou medidas para reduzir os potenciais riscos e os danos à saúde da população”.4 Com isso, pode-se concluir que os danos ocasionados pelo rompimento da barragem de Brumadinho foram de grandes proporções. Ele englobou todos as esferas citadas acima, o que o torna caracterizado como desastre.
O termo vulnerabilidade deriva do latim vulnerabilis que significa “algo que causa lesão”, sendo assim a vulnerabilidade em saúde é considerada por diversos autores como uma lógica de risco que perpassa por aspectos sociais, políticos, econômicos e culturais, além de ser considerada como constitutivo do ser humano frente a finitude. Há ainda a correlação com condições de vida, o que inclui os fatores socioeconômicos e iniquidade de gênero, entre outros, por considerar a pobreza como pressuposto de risco e perigo. Além disso, estudos ponderam sobre a saúde e velhice, associando a fragilidade física, cognitiva e suporte social à vulnerabilidade. Vale ressaltar que as variáveis citadas acima devem ser consideradas dentro das dimensões a seguir: individuais destacando o comportamento e racionalidade; social tendo em foco os aspectos contextuais; e por fim institucional, que está relacionado à forma de lidar dos serviços de saúde frente às situações de vulnerabilidade. Portanto a visão sobre um ser vulnerável deve transcender o biológico, considerando os diversos aspectos que abrangem esse ser e seu contexto.5,6,7
Entretanto Schramm e Kottow consideram como diferentes os conceitos de vulnerabilidade e vulnerados, uma vez que o último faz referência a pessoas que passaram, atualmente, por uma situação que consequentemente as causou danos tendo um impacto negativo sobre as mesmas. Nesse contexto é necessária uma atenção especial da sociedade para com essas vítimas, tendo em vista a implantação de serviços assistenciais que envolvam a proteção e os aspectos que colaborem para a garantia da saúde desses indivíduos, a fim de cessar ou reduzir os danos e reafirmar a integridade e dignidade humana.7
A grandeza do impacto dependerá das condições de vulnerabilidade do local acometido. Isso é, o modo como a comunidade sofrerá com as consequências do evento ocorrido, as limitações das capacidades de redução de risco e resiliência irão depender do grau de vulnerabilidade.3 A cidade de Brumadinho tem uma população estimada de 39 mil habitantes de acordo com o IBGE. Ela se localiza na região metropolitana de Belo Horizonte. Depois da mineração, a atividade principal é a agricultura de pequeno porte. O Córrego do Feijão, região acometida pelo desastre, era um bairro rural com cerca de 415 habitantes. Os moradores eram, eu sua maioria, trabalhadores autônomos. Após o evento trágico, muitos perderam sua renda fixa e tiveram que mudar de bairro.8,9
Diante do exposto para atender as necessidades de saúde dos indivíduos os profissionais de diversas áreas devem trabalhar horizontalmente e com o foco no mesmo objetivo que é o cuidado integral do usuário, uma vez que as mesmas não se limitam às necessidade de atendimentos voltados para os aspectos físicos do cuidado, abrangem também sofrimentos sociais, psíquicos e espirituais, levando em consideração o contexto no qual o indivíduo se encontra.10,11
A Atenção em saúde tem um papel fundamental nas catástrofes que, de acordo com a BVSMS (2017) se divide em três etapas: Redução do Risco, Manejo de Desastres e Recuperação. Para isso, é preciso que seja fortalecida a capacidade de atuação local. É fundamental que o setor de saúde exerça o planejamento e o desenvolvimento se baseando na gestão de risco. Em situações de desastres, o desenvolvimento de ações adequadas, de acordo com as necessidades e no momento, tem o objetivo de reduzir ou eliminar o risco de impacto à saúde.12 O rompimento de barragens é um evento súbito, com grande potencial de destruições, tanto materiais como emocionais. Essa população necessita de atenção em saúde imediata, que consiste no atendimento de vítimas e seus familiares. Isso é feito por meio de equipes multiprofissionais que atendam às necessidades multidimensionais das vítimas. Ademais, é preciso observar, de modo contínuo, as consequências negativas que poderão aparecer ao longo do tempo, e, com isso, prestar atendimento efetivo e integral.13
Os Cuidados Paliativos (CP) são essenciais durante a abordagem de uma população afetada por um desastre. De acordo com a OMS, Cuidados Paliativos podem ser definidos como uma abordagem, baseada na melhoria da qualidade de vida, a pacientes e familiares durante o processo ameaçador à vida. Diante disso, são tomadas medidas para prevenção e alívio do sofrimento através da identificação e avaliação precoces dos fatores envolvidos, que engloba toda a esfera biopsicossocial e espiritual do indivíduo e da situação. Os CP diferem do modelo biomédico, voltado para a doença, pelo seu caráter personalizado e humanizado, tendo em vista respeitar os desejos e anseios daquele indivíduo, deixá-lo expressar sua autonomia, preservar suas necessidades e aliviar sua dor biopsicossocial e espiritual. O acolhimento e sua abordagem envolvem o ser humano em sua integralidade e a necessidade de intervenções físicas, psicológicas, espirituais e sociais que devido a sua complexidade, envolve uma equipe multiprofissional qualificada possibilitando resultados satisfatórios que aliviem o sofrimento humano em situações que ameacem a vida ou em situações de perda.14,15,16,17
As intervenções realizadas pelos CP em situações de desastre visam a ressignificação da vida perante a sua terminalidade e ao sofrimento. As situações trágicas como o caso de Brumadinho, trazem consigo inúmeras perdas, dentre elas a de entes e pessoas próximas. Nesse contexto os familiares se encontram muito fragilizados, sendo um dos papéis dos CP é a proposição de intervenções diante do sofrimento e sobretudo do processo do luto. A equipe multiprofissional nesse âmbito utiliza estratégias para a abordagem da dor total, que tem por finalidade auxiliar a família a expressar seus sentimentos durante aquela situação; conscientizar o enlutado sobre a sua perda e encorajá-lo a se reerguer resgatando suas crenças, autonomia e se reintegrando ao meio, respeitando o tempo necessário de cada pessoa para a aceitação dessa condição favorecendo assim uma nova perspectiva de vida frente à situação atual, a fim de restabelecer a qualidade de vida dos indivíduos acometidos.14,15,16,17
A experiência de vivenciar o momento imediato pós-tragédia marca por demais minha trajetória profissional e pessoal. Deparar com uma multidão em sofrimento, os quais perderam de forma devastadora, familiares, amigos, animais e histórias, exige dos profissionais que se dispõem em acolher estas pessoas equilíbrio emocional e de fato compaixão para se colocar no lugar do outro, partir deste local de sofrimento e se colocar do outro lado fazendo algo por eles. Esta vivência exige resgatar de imediato os princípios fundamentais dos cuidados paliativos, ou seja, comunicação clara e honesta e controle de sintomas, partindo do princípio das diversas dimensões de sofrimento. Para isto, sem um devido equilíbrio e maturidade nos tornamos também vítimas da situação ou simplesmente curiosos.
Um mês antes do acontecimento fui convidado pelos professores e alunos da Faculdade ASA de Brumadinho para falar sobre os CUIDADOS PALIATIVOS. Foi uma noite muito prazerosa e acolhedora, diferente das outras palestras e aulas que já ministrei, pois os questionamentos eram muito voltados para comunicação de notícias difíceis e não para o controle de sintomas, que é sempre mais comum. Voltando para minha cidade pensei por muito tempo na necessidade de tratarmos do tema “comunicação” nos cursos de graduação, como somos frágeis nesta temática.
Já no dia do acontecimento do rompimento da barragem, assim que vi nas redes sociais e noticiários liguei para um ex-aluna enfermeira que trabalhava na região para saber notícias dela e seus familiares, foi quando ela me pediu que fosse para Brumadinho, pois ela estava envolta por um caos, sem saber como acolher, direcionar e comunicar com tantas pessoas ao mesmo tempo em sofrimento, desamparo e dúvidas. Neste momento, como um click, voltou minha aula/palestra naquele local um mês antes, emocionei. Mas como a compaixão é ação, mesmo emocionado entrei em contato imediatamente com várias pessoas que estiveram no evento e perguntei em que eu poderia ajudar. De forma unânime pediram que eu fosse até lá. Juntei forças e conhecimento e fui até Brumadinho.
Em um primeiro momento na Estação do conhecimento, local onde os voluntários ampararam e acolheram os familiares e moradores que ali chegavam, reuni com algumas pessoas do evento e disse que precisaria retomar a palestra e pensar seriamente em compaixão. E para tal tivemos como tarefa primordial, ouvir o que faziam essas pessoas sofrerem naquele momento utilizando da principal ferramenta para o alento da dor emocional, a ESCUTA. Na maioria das vezes o que parece ser pouco, mas fundamental, o simples ato de escutar permitia que o outro esvaziasse pelo ato de falar, chorar ou gritar. Amparamos. As demandas levantadas eram das mais diversas formas, desde “onde está determinada pessoa – marido, filho, esposa, irmão, pai, mãe, amigo, tio… etc.” até “não tenho para onde voltar, minha casa foi destruída”, “que Deus é este”, “perdi o sentido de viver agora”, ou seja dores das mais diversas dimensões. Não dormimos nós nem eles um minuto nesta primeira noite, muito sofrimento, que, como um “beija flor” no incêndio apagávamos pequenos focos de incêndio na alma do outro, mas sentíamos confortáveis e eles também relatavam tal sentimento pelo simples ato de não estarem sós.
Os atos nestes momentos iniciais, quando coordenados por uma visão integral de cuidado, abrangiam desde atendimentos físicos atentos às crises hipertensivas, alterações de glicemias, síncopes, etc., demandas espirituais, no qual orávamos juntos, conforme a fé da pessoa que deste ato necessitava, psíquicas por meio da escuta e atendimentos de psicólogos focados para o momento, além de atendimentos sociais de acolhimento para repouso, banho, alimento, água, etc. Tudo isto inicialmente era o que este grupo de pessoas necessitava. Em outro contexto trabalhavam nobres voluntários e bombeiros nas buscas de vítimas, outro contexto, por nós não vivenciados, mas de extrema relevância. E entre estes distintos grupos a comunicação eficiente fazia com que um apoiasse o outro, ou seja, respeitando uma primícia do cuidado paliativo, o inseparável cuidado do binômio – pessoa e família.
Cuidar do sofrimento humano neste contexto proporcionou uma compreensão da prática dos cuidados paliativos para além das ações voltadas para pessoas com doenças que ameaçam à vida, mas também para pessoas em situações onde vidas já foram ceifadas e desaparecidas e a dor e sofrimento imperam. Na frase de Dame Cicely Saunders, uma das precursoras do cuidado paliativo no mundo, ela expressa de fato o que vivenciamos naquela situação de tragédia, ou seja, que “o sofrimento humano só é intolerável quando ninguém cuida”. Contudo, o ato de cuidar, amparar, acolher, ESCUTAR e agir fez grande diferença na vida de pessoas naquela situação que devastou tantas vidas, e também na vida dos cuidadores que, sem dúvidas, desenvolveram piamente o ato da COMPAIXÃO.
O conhecimento prévio das bases e princípios dos cuidados paliativos me permitiu usar desta filosofia para fazer daquele momento trágico menos sofrido, ou seja, ao proporcionar o cuidado com outro os sintomas foram, mesmo que minimamente, aliviados.
Alexandre Ernesto Silva é enfermeiro, Doutorado e mestrado na temática dos Cuidados Paliativos, Docente da Universidade Federal de São João del-Rei – UFSJ – Campus Centro-Oeste – Dona Lindu, e membro da Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP).
O conteúdo foi elaborado com a contribuição dos alunos:
– Thaís Oliveira Dupin – medicina
– Maria Adelaide Januário de Campos – enfermagem
– Rosimeire de Paula Silva – enfermagem
– Fabiano Maia Moreira – enfermagem
REFERÊNCIAS:
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