Quebrando tabus
Se a ideia era fazer com que o tema “morte” ganhasse visibilidade e gerasse discussão e reflexão, a dramaturga Camila Appel não poderia ter encontrado espaço melhor: um blog no site do jornal Folha de S. Paulo.
No ar desde outubro de 2014, foi o depoimento da atriz Odete Lara que a inspirou para a criação do espaço virtual que ganhou o adequadíssimo nome de “Morte Sem Tabu”. “Esse blog vê sua razão de existir em encarar o tema e não reprimi-lo”, escreveu, em sua primeira postagem.
Desde então Camila Appel já escreveu sobre as mais variadas questões que envolvem a morte: dilemas morais, testamento vital, eutanásia, cemitérios, grupos de apoio, luto, autópsias e cremações. Confessa que ainda tem muito a dizer sobre cuidados paliativos. “Escrevo sobre a morte porque é algo de que eu tenho muito medo e que, ao mesmo tempo, é absolutamente natural”, diz Camila.
Para ela, conversar sobre a morte ainda é tabu no Brasil, mas aos poucos vamos avançando para discussões mais abertas sobre o assunto. “Acho inevitável falar do envelhecimento e da morte com mais abertura, procurando minimizar o sofrimento. E para quebrarmos o tabu, para podermos discutir como viver e morrer melhor, falar a respeito é o principal”, afirma.
Na entrevista a seguir ela conta sobre a beleza e as dificuldades de se escrever sobre um tema que muita gente evita, mas que faz parte da vida de todos, invariavelmente.
Por que e como começou o blog “Morte sem Tabu”?
Começou com uma inspiração de um depoimento da grande atriz Odete Lara, que faleceu há pouco tempo. Eu estava estudando sobre a vida dela e li uma bibliografia em que ela falava que, depois do sexo, a morte era o próximo tabu a ser quebrado na nossa sociedade. Aquilo me intrigou bastante. Em conversas com amigos médicos também observava muitas questões e dilemas sobre o fim da vida e assuntos relacionados que não eram discutidos em outras esferas, como no jornalismo ou em políticas públicas. Essas observações, atreladas a uma consciência de que a nossa sociedade está envelhecendo, me levaram a achar que essa era uma tendência. Daí nasceu o ímpeto de tocar esse projeto como uma das pioneiras dessa tendência. Acho inevitável falar do envelhecimento e da morte com mais abertura, procurando minimizar o sofrimento. E para quebrarmos o tabu, para podermos discutir como viver e morrer melhor, falar a respeito é o principal.
Você acha que a relação das pessoas com a morte tem mudado?
O sociólogo alemão Norbert Elias fala que a morte antigamente era vista como algo natural, porque as pessoas morriam em casa, eram veladas em casa, as crianças participavam. Hoje em dia, com o afastamento da morte para o ambiente hospitalar, as coisas mudaram. O hospital é um ambiente que precisa de higienização e esterilização muito boas. O paciente acaba ficando muito isolado, as crianças geralmente não são levadas para lá. Então não há mais a morte dentro das casas. Ela fica cada vez mais afastada e cada vez mais difícil para as crianças, por exemplo, que não sabem o que é a morte ou o morrer. Assim, contam metáforas para elas, como “Vovô foi viajar, vovô foi pro céu…”. Escrevi até um post sobre isso, em que a psicóloga Lucélia Paiva fala que quanto mais realista você conseguir ser, melhor é. Acho também que as pessoas estão querendo, cada vez mais, saber quais são seus direitos: “Como posso morrer? Posso morrer em casa? Posso morrer no hospital? O que é sedação paliativa? Como a medicina pode me ajudar? Como ter uma morte melhor”. Um relatório feito pela revista The Economist em 2010 com um ranking sobre qualidade de morte mostrou que o Brasil é um dos piores países para se morrer.
Que retorno você tem com o blog?
Os leitores se envolvem muito. Acho que existe uma carência de falar sobre o assunto, porque as pessoas comentam muito. Recebo e-mails de muita gente contando sobre suas próprias vidas, sobre experiências com os pais, avós e noto como era realmente importante que eles falassem sobre isso.
Meço a popularidade do blog pelos comentários, pelos e-mails e pela quantidade de recomendações do Facebook. Alguns posts recebem 3 mil recomendações no Facebook, outros recebem entre 50 e 100. Depende muito do tema, do dia e do momento em que é publicado. O tempo que ficou divulgado na home da Folha também influi. Quando o UOL coloca na sua home a quantidade de curtidas cresce muito. Os posts sobre suicídio foram muito recomendados, talvez porque se trate de uma realidade que pouca gente aborda.
De sua experiência, as pessoas estão falando mais sobre morte no Brasil?
Acho que estão começando e é uma tendência inevitável. Vamos falar cada vez mais porque o mundo está envelhecendo, incluindo o Brasil, que tem uma péssima infraestrutura para acolher seus idosos. Isso precisa mudar. Em alguns países se veem idosos andando na rua, se divertindo, existem ambientes de lazer e cultura voltados para eles. Até entrevistei um geriatra que me contou de uma experiência no Japão: “Fiz um estágio no Japão e o jeito que o motorista pisa no freio no ônibus lá é completamente diferente de como o motorista pisa no freio aqui. Lá ele vai com calma porque ele sabe que tem idosos, e numa parada brusca um idoso pode quebrar a bacia e nunca mais andar”. Achei interessante essa comparação. Também tenho sido chamada para falar ou fazer peças sobre morte. Acho que é uma tendência e estamos no começo dela.
Como você acha que as conversas sobre morte podem ajudar a quebrar o tabu?
Quando você as tira do lugar mórbido e traz para uma conversa informal de cotidiano, que inclui falar sobre o que seu pai ou avô, como o seu avô pensam da morte, o que eles gostariam para eles no final de vida. Por exemplo, se ficassem em estado vegetativo, gostariam de ficar dependentes de aparelhos para manter a vida? Preferem ser enterrados ou cremados? O que é o testamento vital?
Acho que esse tipo de conversa é importante, não é macabro. Muita gente faz o testamento vital nos Estados Unidos, por exemplo. Conversei com uma advogada aqui no Brasil e ela me disse que há um tempo realmente havia muito mais tabu em relação a isso, mas que ele parece estar diminuindo.
Houve alguma experiência que te marcou desde que você iniciou o blog?
Sim. Uma experiência importante foi uma pauta sobre luto e na ocasião entrevistei uma mãe que havia perdido seu filho. Esse post foi bem popular e me marcou muito também. Eu tenho um filho, então falar desse luto é muito difícil.
Mas a mais marcante foi a visita que fiz ao SVO (Serviço de Verificação de Óbitos). O SVO e o IML de Campinas funcionam no mesmo espaço. Fui até lá para acompanhar autópsias e isso mudou a minha perspectiva do corpo do ser humano. Vi como somos frágeis e do que somos formados. É interessante essa consciência de haver um recipiente: a pessoa, depois de morta, parece um objeto com efeitos especiais. Os corpos autopsiados realmente pareciam bonecos. É muito impactante pensar em cada lembrança que havia ali e me dar conta de que aquele corpo havia sido um ser humano amado, respeitado, parte de uma família. Isso me impacta muito, porque é muito contraditório se ver dessa forma. É realmente trazer o ser humano para um espaço muito menor do que estamos acostumados a ver.
Essa experiência mudou a forma como enxergo o corpo. Quando alguém me fala “Estou com dor de cabeça” agora me vem uma imagem de um corpo inteiro aberto e suas estruturas. No fundo, tudo é muito menor do que achamos que é, muito mais compacto e funcional. É um equilíbrio. A morte é o desequilíbrio do corpo. Talvez por não ser médica e não ter uma grande experiência com essa realidade, ver alguém morto ainda me impacta muito. Não consigo coisificar a morte.
Por que, então, escrever sobre ela?
Porque é algo de que eu tenho muito medo, mas que é ao mesmo tempo absolutamente natural. Não há como escapar disso. Essa é a minha melhor utilidade, no momento, como escritora. Gosto muito de fazer pesquisa e preciso dela para meus livros. Quero mergulhar nisso, me voltar completamente para esse universo, investigar, esmiuçar para tentar entender um pouco melhor. No fundo, quero quebrar o tabu da morte para mim.
Por Fernanda Figueiredo