Redes sociais e vida íntima do paciente: um conflito (im)perceptível
Artigo Por: Carla Carvalho e Luciana Dadalto
“João era um senhor franzino de cerca de 87 anos, dos olhos verdes e cabelos brancos como chumaços de algodão. Estava ali internado há alguns dias, após uma queda e fratura no fêmur. Estava muito fraco pela perda de sangue na cirurgia, e o prognóstico não era muito positivo.
Entre momentos de devaneios e presença, adorava contar a história de São Lucas, já se percebendo entre os netos uma certa impaciência com a repetição. Contava sobre suas viagens e do gosto que tinha por vestir um belo terno branco de linho.
Certo dia, ao receber visita de uma filha, disse que queria mesmo era comer coxinha com guaraná Antártica. Apesar das restrições à alimentação praticadas no hospital, e do quadro do próprio paciente, demos um jeitinho de atender o seu pedido.
Noutro dia, acompanhamos a visita do seu filho mais velho, que morava no interior, e de repente fez-lhe a pergunta: “filho, eu vou voltar a andar?”. Após um momento de silêncio em que olhares aflitos se entrecruzavam, o filho respondeu: “sinto muito, papai”. Naquela mesma noite o Sr. João partiu, sereno como um passarinho que alçou voo pra andar em outros planos.”
O relato acima é fictício, e o Sr. João bem poderia ser o Sr. Manoel, Wilson ou Ronaldo… Este tipo de narrativa, tocante e amorosa, tem sido cada vez mais frequente nas redes sociais de profissionais que trabalham com Cuidados Paliativos, não raras vezes acompanhada por fotografias do paciente com a equipe médica. Estes profissionais buscam a um só tempo desabafar sobre suas dificuldades, compartilhar suas vitórias, difundir a área de atuação entre a população e conscientizar as pessoas acerca da importância de uma morte respeitosa, certos de que suas práticas contribuem para humanização do atendimento à saúde.
É verdade que a divulgação dos Cuidados Paliativos é de suma importância social, contudo, deve ser feita sem ultrapassar os limites éticos das profissões, que preceituam o segredo em relação aos dados e a proteção da imagem do paciente.
O caso apresenta contornos especiais, pois diferentemente daqueles em que em geral se discute sigilo médico (vazamento de prontuário do paciente, divulgação de resultados de exames, etc), não se verifica uma intenção censurável ou sensacionalista por trás da publicação, mas sim uma aura de solidariedade e amor. Entretanto, o sentimento nobre por trás da manifestação não a torna lícita e ética e, ao contrário do que se pensa, a popularização da prática pode resultar em abusos disfarçados de humanização de cuidados
O Código de Ética Médica estabelece em seu art. 73 ser vedado ao médico “revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente.” O dispositivo encontra correspondente nas normas ético-profissionais de todas as profissões de saúde, de modo que se pode afirmar haver um dever de sigilo a obrigar todos os profissionais participantes da equipe multidisciplinar de cuidados ao paciente.
Não há que se falar, em primeiro lugar, em dever legal de divulgação dos relatos pessoais do paciente, nem consentimento para divulgação em redes sociais dos dados da sua esfera íntima. “No momento em que compartilha um segredo com o médico – seja aquele identificado por exames clínicos e complementares, seja ao desabafar sobre sua vida privada – o paciente crê no acordo inicial tácito de que o profissional não abrirá mão de sua responsabilidade do sigilo.”
Apesar dos comandos ético-profissionais mencionarem o uso das informações com o consentimento do paciente, é preciso cuidado na hora da coleta de tal autorização, especialmente em se tratando de pacientes em fim de vida, quando muitas vezes se pode questionar o discernimento por trás da declaração. Tal manifestação, para ter validade jurídica, deve ser proferida em momento de ampla lucidez, referenciando de forma específica quais os contextos, finalidades e para quais públicos as informações poderiam ser utilizadas, prevendo ainda a possibilidade de livre revogação, a qualquer tempo. Ademais, o profissional deve cuidar para que os dados sejam utilizados somente com fins educativos e científicos, sem promover a identificação do paciente.
De outro lado, questiona-se a existência de motivo justo, consistente em interesse moral ou social mais amplo na divulgação das histórias. Conforme Genival Veloso de França: “Pode-se dizer que justa causa é o interesse de ordem moral ou social que autoriza o não cumprimento de uma norma, contanto que os motivos apresentados sejam relevantes para justificar tal violação. Fundamenta-se na existência de estado de necessidade.” A toda evidência, não se verifica qualquer necessidade imperiosa que justifique a abertura da intimidade e vida pessoal de um sujeito no mundo virtual, infinito e incontrolável, sem benefícios palpáveis para terceiros ou para a coletividade.
Ora, cada vez mais a facilidade de publicação de informações na internet impõe que se diferencie o que seja “interesse público” daquilo que se identifica como “interesse do público”. Pela primeira expressão, tem-se os dados e informações cujo conhecimento é de efetiva relevância social, reconhecendo-se um direito social ao conhecimento, por razões históricas, sanitárias, políticas, dentre outras. Diferente é o “interesse do público”, que mais se aproxima de uma “fofoca”, tendo por objeto informações destinadas a satisfazer desejos pessoais ou curiosidade dos receptores.
Quando a publicação da história nas redes sociais inclui fotografias do paciente, a conduta torna-se ainda mais censurável, violando também o art. 75 do Código de Ética Médica, que determina ser vedado “fazer referência a casos clínicos identificáveis, exibir pacientes ou seus retratos em anúncios profissionais ou na divulgação de assuntos médicos, em meios de comunicação em geral, mesmo com autorização do paciente.” É que a divulgação da imagem produz uma imediata e inconfundível identificação do paciente, cuja figura torna-se conhecida de forma definitiva e irreversível ao público das redes sociais.
Frise-se, ainda, que a utilização da imagem e mesmo do relato de caso do paciente pode ser configurada como propaganda, especialmente na medicina, prática vedada pela Resolução CFM 1974/2011. Afinal, se o trabalho do paliativista é garantir um fim de vida digno ao paciente, ao postar a história ou mesmo a imagem desse fim de vida, o profissional está divulgando “técnica, método ou tratamento”, o que é vedado, mesmo com expressa autorização do paciente.
A alegação de que os perfis e páginas virtuais são mantidos sob status privado, controlando-se o acesso a pessoas selecionadas, não serve de justificativa para a divulgação, já que (i) nem àqueles que são considerados como pertencentes à esfera da confiança do profissional da saúde é permitida a exposição da vida privada do paciente; (ii) não há na atualidade garantia de privacidade e não vazamento de dados inseridos em ambiente virtual, sendo certa a falibilidade dos filtros de acesso a conteúdo disponibilizados pelos sites e aplicativos. Por fim, as pessoas em geral ignoram ou dão pouca importância aos termos de confidencialidade cuja aceitação é requisito para ingresso nas redes sociais, sendo preciso alertá-las de que em tais termos constam invariavelmente cláusulas de permissão de utilização e aproveitamento dos dados postados, que se tornam propriedade dos vetores de comunicação.
Portanto, os profissionais de saúde, e neste contexto especialmente aqueles que trabalham na área de Cuidados Paliativos, devem ficar atentos para a necessidade de uma visão especialmente crítica sobre o conteúdo de publicações nas redes sociais, a fim de preservar os interesses e direitos dos pacientes e contribuir para a dignidade de suas profissões.
Sobre as autoras:
Carla Carvalho é Doutora e Mestre em Direito pela UFMG. Professora universitária. Sócia da Dadalto & Carvalho Sociedade de Advogados.
Luciana Dadalto é Doutora em Ciências da Saúde pela Faculdade de Medicina da UFMG. Mestre em Direito Privado pela PUCMinas. Sócia da Dadalto & Carvalho Sociedade de Advogados. Administradora do portal www.testamentovital.com.br
Referências:
(CREMESP. Sigilo Profissional. Quebra de sigilo por “motivo justo” causa grandes dilemas aos médicos. Bioética. Jornal do Cremesp. Edição 289. 01 fev. 2012. Disponível em: <https://www.cremesp.org.br/?siteAcao=Jornal&id=1550>. Acesso em 10 ago 2017.
FRANÇA, Genival Veloso. O Segredo Médico e nova ordem bioética. Disponível em: <https://social.stoa.usp.br/articles/0015/4649/Texto_2_-_O_Segredo_MA_dico_e_nova_ordem_bioA_tica.pdf>. Acesso em 10 ago 2017.