Reflexões de uma médica Paliativista na Nigéria
*Por Danielle Soler
No meu primeiro dia como médica voluntária na equipe de Cuidados Paliativos em um hospital na cidade de Abeokuta, sudoeste da Nigéria, eu observei a ausência de ferramentas para a avaliação sintomática e funcional dos pacientes. Expliquei a equipe a necessidade de uma ferramenta que servir-se para dar voz ao paciente, permitindo uma avaliação consistente na detecção de sintomas, para a documentação de futuras pesquisas, avaliação de problemas de saúde mental e também sobrecarga do cuidador. Além de avaliar o impacto do processo do cuidado ofertado e promover novas intervenções nos atendimentos em áreas necessárias.
Após uma semana de discussões, a equipe concluiu que usaríamos o APCA, Palliative Outcome Scale (POS), que é uma escala validada para uso na África, baseia-se no POS desenvolvido no Departamento de Cuidados Paliativos, Política e Reabilitação do King’s College na Inglaterra, focada na definição de cuidados paliativos ofertada pela Organização Mundial de Saúde.
A equipe hospitalar de Cuidados Paliativos desse Hospital trabalha uma vez por semana no ambulatório de HIV / AIDS atuando desde o diagnóstico, tratamento, complicações e cuidados de fim-de-vida. Nosso primeiro caso foi um jovem casal muçulmano soropositivo que foi atendido no ambulatório em sua primeira visita. Nós aplicamos o POS Africano e não identificamos problemas físicos ou emocionais. Parecia ser o exemplo de um casal perfeito e harmonioso.
Depois de alguns minutos, o médico da equipe começou a fazer algumas perguntas relativas ao seu domicílio e eles responderam que viviam separados. Foi um espanto geral; Como um casal muçulmano pode viver em casas separadas? A equipe perguntou se o marido tinha outra esposa, uma vez que os muçulmanos são autorizados a ter até quatro esposas na Nigéria. Ele explicou que não tinha outra esposa e que o problema do casal era a desobediência: a esposa não era submissa e não aceitava suas demandas. Após esta breve explicação, minha impressão foi de que intimidamos o casal no início da entrevista e não proporcionamos um ambiente adequado e relaxado, como exigido pelo manual POS África , para que eles pudessem se expressar de forma eficaz.
Naquele momento, presenciei a equipe recomendando que a esposa voltasse para casa e foram muitos e muitos conselhos. A linguagem corporal da esposa revelou sofrimento emocional e parecia não concordar com tais advertências. A psicóloga e eu acompanhamos a discussão com nossa escuta ativa, mas não entendemos todo o diálogo porque a conversa era uma mistura de inglês e ioruba, a língua local. Após a minha pergunta sobre os fatos, os membros da equipe me disseram que as famílias do casal não aceitavam o comportamento da jovem e acrescentaram que estávamos falando de questões culturais e que, culturalmente, nesta região da Nigéria, a mulher deve sempre ser submissa ao marido . Ela deve aceitar sua situação de subserviência. Fui também informada de que todos os conselhos fornecidos foram dirigidos a este assunto.
Minha cabeça começou a ferver, colocando-me no lugar da esposa. O que ela estava pensando? Talvez ela não aceite sua situação atual? Só porque eu sou identificada como um membro que pertencente a um grupo familiar que tem uma religião, a equipe pode assumir automaticamente que eu tenho as mesmas crenças?
Qual era essa cultura que parecia totalmente diferente de tudo o que eu vivi até agora?
Estamos falando da Nigéria, o país mais populoso da África subsaariana, que segundo o último censo realizado no país, 50,4% da população é muçulmana, 48,2% constituída por cristãos, e 1,4% de outras religiões, 27,8% são católicos, 31,5% protestantes e 40,7% pertencem a outras denominações cristãs. Na região onde estou, no sudeste da Nigéria, todos vivem harmoniosamente.
Nessa equipe de cuidados paliativos, há uma enfermeira católica, uma muçulmana e outra protestante. Dois médicos são muçulmanos, um católico e outro cristão sem religião específica. Em uma dessas tardes encantadoras, onde todos estão na sede da equipe, falando sobre assuntos diferentes, um na cozinha preparando um molho de tomate para comer com mandioca, outros almoçando em outra sala, outros brincando com crianças, filhos de alguns membros da equipe, pergunto as mulheres do grupo sobre o papel que desempenham em seus casamentos. Todas me responderam com grande orgulho que são submissas aos seus maridos, porque isso é o que está escrito na Bíblia.
Elas descreveram uma maneira peculiar, eu diria que é o “jeitinho brasileiro” de ser submisso. Elas aceitam todas as opiniões de seus maridos, mas quando não concordam, tentam resolver ao longo do tempo, através de conversas harmoniosas, sem imposição de idéias.
Uma enfermeira da equipe, muçulmana, me contou que seu marido possui outra esposa. Numa manhä que ficamos 3 horas no posto de gasolina aguardando para abastecer o carro, ela me explicou como tudo ocorreu. O marido chegou em casa e contou que havia casado novamente. Não houve brigas nem desavenças.
E como se encontram os Cuidados Paliativos na Nigéria?
The 2015 Quality of Death Index Ranking palliative care across the world escrito pela revista The Economist Intelligence que lançou sua segunda edição no ano de 2015, avaliou 80 países quanto a disponibilidade e acessibilidade de cuidados, recursos humanos e treinamento, qualidade e envolvimento da comunidade na conscientização de campanhas públicas e apoio voluntário em cuidados paliativos. A Nigéria ficou classificada na 77ª posição nesse ranking, refletindo a disponibilidade limitada e má qualidade dos cuidados paliativos em geral.
Atualmente, o relatório da Comissão Lancet de cuidados paliativos e alívio da dor mostrou que a Nigéria possui um equivalente de Morfina (morfina em mg / paciente com necessidade de cuidados paliativos, média de 2010) de cerca de 0,8 mg, o menor nível mostrado nesse relatório.
Na Nigéria não há cobertura governamental para a saúde e todo e qualquer tipo de tratamento deverá pago pelo próprio paciente.
É nesse contexto que me pergunto, qual é o papel da equipe de cuidados paliativos?
É para dar conselhos para a perpetuação da cultura que vivem, e querem manter ou simplesmente acompanhar pacientes que sofrem transformações culturais, imparcialmente, proporcionando apoio emocional e social durante o processo da doença?
Após alguns dias na África, eu ouvia diariamente que aqui a cultura não permite o uso de morfina intravenosa, que não se pode falar sobre a morte, que não se fala sobre prognóstico com familiares de pacientes, que ser homossexual é pecado e crime, que não há como usar via subcutânea, que não se pode sedar paciente em situações de necessidade, que a experiência é mais importante que evidências científicas aqui porque os africanos são diferentes, e etc… Tudo me era respondido assim: – Doutora, a nossa cultura é assim e fim de papo.
A diferença cultural deve acabar com a discussão de todas essas questões? Ou usamos essa diferença para simplesmente agir de uma maneira para mudar nada?
Na minha tentativa de encontrar respostas, abro minha bíblia em Cuidados paliativos, Oxford Texbook the Palliative Medicine e leio que a cultura não é estática porque a identidade, etnia e religião dos pacientes está em constante processo de adaptação e mudança, sempre em resposta a interações com os outros que são diferentes em várias maneiras.
O livro acrescenta que o respeito pela diversidade não significa que devemos tolerar ações que violem os direitos humanos. Parece que eu encontrei uma conexão segura para guiar meus pensamentos e lá vou ler a Declaração dos Direitos Humanos e encontrar o artigo 16 que diz: “Homens e mulheres de maior idade, sem qualquer restrição de etnia, nacionalidade ou religião, têm o direito de se casar e encontrar uma família. Eles gozam de direitos iguais em relação ao casamento, sua duração e sua dissolução”. E continuando a leitura Oxford, “O multiculturalismo exige que respeitemos o papel da religião e outras crenças e práticas religiosas, no entanto, pode ser difícil tolerar práticas que violem princípios morais como a autonomia. No entanto, pode-se argumentar que tal princípio moral não é culturalmente neutro e que reflete a posição do mundo ocidental e o respeito pela autonomia é um ideal ocidental. Entre outras populações, a família ou comunidade está ciente de ser o representante da autonomia, como é o caso das famílias latino-asiáticas. O propósito para todas as partes em tais interações não é condenar o outro, mas procurar entender e criar conjuntamente uma resolução mutuamente aceitável. O entendimento vai muito além de interpretar crenças e valores, isso também significa olhar para o aspecto estrutural desta prática: a que propósito isso serve nesse grupo ou sociedade cultural, se os valores do grupo valorizam a autonomia familiar e não a autonomia individual enquanto o médico ou o sistema de saúde valoriza o contrário, então uma solução mútua pode ser solicitada ao paciente, se ele ou ela preferir de forma autônoma que a família tome essa decisão, renunciando de forma livre e espontânea sua autonomia”.
Depois de tantas reflexões, ficou claro para mim que as mudanças culturais são positivas no desenvolvimento da humanidade, como tantas que observamos na nossa história: direito ambiental, direitos do consumidor, da mulher, da criança, adolescente, idosos, portadores de deficiência e também em relação aos cuidados paliativos. Durante 10 anos no Brasil, o cenário de cuidados paliativos foi diferente e a mudança ocorreu através do comportamento de vários profissionais da área espalhados por todo o país através de atividades educacionais, políticas públicas e engajamento da sociedade.
Também vejo claramente que esta convivência harmoniosa de várias religiões nesta região da Nigéria pode gerar conflitos entre os jovens, mas não é o papel da equipe de cuidados paliativos dar conselhos sobre como cada um deve viver sua vida. O papel da equipe é fornecer apoio emocional, físico e social, ou seja, oferecer todo o suporte necessário para as transformações que cada paciente possa experimentar em sua trajetória.
*Daniele Soler Lopes é médica especialista em Clínica Médica com título de Área de Atuação em Medicina Paliativa pela AMB , mestre em Cuidados Paliativos pela Universidad Autónoma de Madrid e Bioética pela Universidade de Barcelona . É presidente da Regional Norte-Nordeste da Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP).