Testamento vital: um caminho para as conversas difíceis
Soberania e dignidade da pessoa humana são direitos assegurados no Artigo 1º da Constituição brasileira, mas muitas vezes são ignorados em casos de pacientes com doenças que ameaçam a vida. Não raro, os medos da família e a insegurança dos médicos acabam se sobrepondo ao que o paciente deseja para o final de vida.
Para garantir que as vontades do paciente sejam respeitadas nessa fase, caso ele esteja inconsciente ou com capacidade de decisão reduzida, existe o testamento vital, também conhecido como diretivas antecipadas de vontade. Trata-se de um documento onde o paciente pode registrar, por exemplo, a vontade de não ser mantido vivo com a ajuda de aparelhos, nem submetido a procedimentos invasivos ou dolorosos, em caso de agravamento do quadro de saúde. No documento o paciente também pode indicar uma pessoa de sua confiança para tomar decisões sobre os rumos do tratamento a que será submetido quando não puder mais fazer suas escolhas.
As diretivas antecipadas de vontade e seus desdobramentos foram tema do evento “Longevidade e Testamento Vital: estamos preparados?”, promovido pelo Observatório da Longevidade (OLHE), com apoio da Danone Nutrition Care, no dia 18 de março, na Congregação Israelita Paulista, em São Paulo.
Recurso aprovado em 2012 pelo Conselho Federal de Medicina, o testamento vital vem aos poucos ganhando espaço, mas talvez seu maior mérito até agora tenha sido gerar discussões fundamentais a respeito do final de vida. Numa pesquisa da revista The Economist sobre qualidade de morte em 40 países, o Brasil ficou como um dos últimos da lista, em parte pela falta de diálogo e informação sobre o assunto.
Esse foi um dos pontos destacados na palestra de Reinaldo Ayer, coordenador do Centro de Bioética do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (CREMESP). Segundo ele, o testamento vital não é apenas uma ferramenta legal, mas uma oportunidade de médico e paciente discutirem o assunto, permitindo uma aproximação entre os dois. “Não se trata de uma relação jurídica. O testamento vital permite o resgate da relação médico-paciente”, explicou.
Para a economista e gerontóloga Elca Rubinstein, 69 anos, o testamento vital abriu espaço em sua família para conversar sobre suas vontades para o final de vida. Segundo ela, as discussões com seus três filhos foram bastante evitadas no início, depois aceitas com relutância. Hoje já se fala no assunto com um pouco mais de naturalidade. “Eu vejo a morte como uma passagem. E eu quero uma passagem boa, sem sofrimento, que não gaste todos os meus bens com meu tratamento. Por motivos físicos e psicológicos, decidi fazer meu testamento vital”, disse.
Elca guarda seu testamento vital no congelador da sua casa – como se faz nos EUA, onde se formou em gerontologia. Sua família e secretária já foram avisadas da localização do documento, em caso de emergência. Dois de seus filhos assinaram o documento como representantes e o terceiro, como testemunha. Para ela, a importância do testamento vital está exatamente em fazer valer a vontade do paciente quando ele não puder mais tomar essa decisão sozinho.
A discussão sobre final de vida pede necessariamente pela informação. Pérola Melissa Braga, advogada especializada em Direito da Pessoa Idosa, auxilia famílias em questões relacionadas a testamento vital e afirma que, muitas vezes, a pessoa que levanta o tema é incompreendido por outros membros da família. “Alguns acham que é melhor não discutir a morte, porque dá azar. Outros acham que ele quer receber a herança”, contou.
A falta de informação também faz com que médicos sejam relutantes em discutir e cumprir o testamento vital de pacientes. O reconhecimento das diretivas antecipadas de vontade pelo CFM em 2012 melhorou um pouco o quadro, mas ainda assim, muitos se sentem relutantes. “Só traremos mais médicos para essa luta quando houver mais segurança nesse processo e o profissional se sentir mais protegido para cumprir as vontades do paciente”, ressaltou.
Para ela, a falta de legislação específica sobre o tema acaba sendo um fator positivo. “Muitas vezes a legislação endurece, engessa e dificulta”, afirmou. Hoje, a elaboração do testamento vital no Brasil é simples: basta ser maior de 18 anos e estar lúcido. Menores de 18 anos podem conseguir redigir com autorização judicial. Embora não seja obrigatório, o registro público é recomendado. O documento pode ser mudado ou cancelado a qualquer momento pelo paciente.
“Quando diante de uma situação de final de vida, o cuidado e o amor dos familiares acabam conflitando com a autonomia e a vontade do paciente, o documento faz a diferença”, concluiu.
Por Fernanda Figueiredo