Um dia que vale a pena viver
Morte e perda são assuntos difíceis de serem abordados em hospitais e consultórios médicos – e ainda mais complicados para serem discutidos em família. No entanto, são temas sobre os quais a geriatra Ana Claudia Arantes trata com muita leveza.
Seus pensamentos sobre morte e perda foram formados ao longo dos anos de profissão, atuando em unidades de terapia intensiva, hospitais e pelos cursos de especialização em cuidados paliativos no Instituto Pallium e na Universidade de Oxford, na Inglaterra. Sua visão começou a ser conhecida do grande público após Ana Claudia ser convidada para fazer uma sessão do TEDxFMUSP, conferência em que pessoas partilham experiências sobre temas que dominam, em 2012. Disponível na Internet desde 2013, a conferência da geriatra já alcançava quase um milhão de visualizações em setembro de 2016
Com o lançamento do livro A morte é um dia que vale a pena viver no VI Congresso Internacional de Cuidados Paliativos, Ana Claudia conversou sobre a obra e sua visão de cuidados paliativos. Atualmente, a médica atua em consultório próprio e no Hospice do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo), na unidade Jaçanã. Confira a entrevista.
Por que o lançamento do livro neste momento?
O livro está sendo gestado desde 2014, quando recebi o convite da editora para escrever sobre o tema, graças ao sucesso do TEDxFMUSP que fiz. Há uma necessidade urgente de se conversar mais sobre a morte na sociedade em geral.
Para quem você escreveu o livro?
Escrevi pensando no público em geral, não só para profissionais da saúde ou para as pessoas que estão perdendo alguém. Minha proposta é compartilhar a experiência que tenho de cuidar de pessoas em fase final, contar como é viver isso como profissional de saúde. Falo de autocuidado, luto, cuidados paliativos e perda em geral, não só da morte concreta, mas da morte de relacionamentos, das coisas que perdemos todos os dias. Creio que o livro é bastante transformador.
Por que a morte é um dia que vale a pena viver?
A morte é um dia que vale a pena, porque ela está dentro da vida, não fora dela. O contrário de vida não é morte, é nascimento. A vida é um intervalo entre o nascimento e a morte. O primeiro dia de vida é nascimento e, o último, a morte. Com esse título quero provocar as pessoas a perceberam que todos os dias valem a pena ser vividos. E valem justamente por causa desse último dia – ele faz todos os outros valerem a pena. Quando não temos noção de que vamos morrer, não damos valor para os outros dias.
No TEDx, você diz que a morte não é bonita. Por quê?
As pessoas me dizem ´seu trabalho é lindo´. Não é verdade, meu trabalho não é bonito. A morte pode ter sentido como força de transformação e isso é bonito. Mas não é bonito perceber que você nunca mais vai ver a pessoa que ama, que você vai encerrar sua vida e todas as coisas que você viveu acabaram.
Quando um oncologista cura um câncer, esse resultado é uma vitória para o profissional. Qual a recompensa do médico paliativista?
Quando um médico cura um câncer, ele não tem segurança de que o paciente vai viver bem por conta disso. Vamos imaginar um rapaz de 20 anos com osteosarcoma na perna que seja jogador de basquete. Vamos amputar a perna e ele está curado, mas não necessariamente ele vai achar que a vida dele está boa. Você salvou a dimensão biológica do paciente, mas o que a vida vai significar para ele sem a perna? O paliativista alivia o sofrimento de uma pessoa – tanto físico, como social e espiritual. Isso é permitir uma boa vida, não importa quanto tempo resta dela. Por isso defendo que o paliativista precisa envolver o paciente e a família em seus cuidados. Aliviar o sofrimento de todos faz parte de seu papel.
Você que já se despediu de muitos pacientes notou se há, digamos, padrões de morte? Ou é uma experiência totalmente única a cada paciente?
Observei que as mortes mais serenas são das pessoas que vivem seu eixo de espiritualidade baseado em amor e verdade, não importa o caminho ou religião. Entendo espiritualidade como o eixo como você se relaciona consigo mesmo, com as pessoas que ama, com a sociedade e, para aqueles que creem, como se relaciona com Deus. No hospital, observei que os pacientes que tiveram as mortes mais serenas eram ateus. Já no Hospice, tive experiências lindas e vi mortes tranquilas de pessoas de diversas religiões. Por isso digo que a espiritualidade não depende do caminho religioso, mas de sua experiência de vida com amor e verdade. Se sua vida for gerada em culpa, medo, preconceito e superstição, o momento da morte costuma ser um desastre.